quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

81 anos de LHS

 81 anos de LHS


Nem Santa Catarina e nem Joinville prestaram uma justa homenagem a este catarinense que está na galeria dos grandes homens públicos do Brasil. Hoje Luiz Henrique estaria completando 81 anos.

Tive a honra e o privilégio de estar muito próximo e ter sido um colaborador de seus governos. Pensava primeiro no coletivo. Pensava grande. Nada de picuinhas, de fofoquinhas e intrigas palacianas que tanto alguns adoram e se nutrem. Cortava a fofoca e a lambança na hora, por isso seus governos foram bons, fortes, justos e realizadores.

Tornou Joinville Gigante e tornou Santa Catarina um Estado respeitado perante a Nação.


Era um sujeito humano, tinha paciência com os mais humildes e sempre ensinava como um bom professor. Fui também seu aluno, seu escudeiro, seu companheiro de viagens e abrimos caminhos por Toda Santa Catarina, quando nem era bem aceito com apenas 5% dos votos. Mas sua visão de posteridade, sua tenacidade, simplicidade o tornaram governador duas vezes e senador de todos os catarinenses. Já era grande como deputado federal, ministro, presidente nacional do PMDB.


Mas ele fazia questão que aprendêssemos, que obtivéssemos cultura, conhecimento.

Esta foto é um exemplo. Foi em Bratislava, capital da Eslováquia, em frente ao Teatro Nacional. Era um sábado de manhã e ele viu o cartaz de uma ópera que estava sendo encenada. Estes espetáculos os europeus compram com meses de antecedência. Já havíamos visitado o presidente Rudolf Schuster com quem jantamos na noite anterior. Luiz Henrique não teve dúvidas, falou com o diplomata que estava nos acompanhando, o Milan Cigan, que depois foi embaixador no Brasil e seguiu por outros países.

  • Milan, será que o presidente consegue ingressos para a ópera? É que o Benhur nunca entrou num teatro tão bonito e nunca viu uma ópera. Argumentou LHS ao diplomata. E eu quieto só apreciando a prosa.

Prontamente Milan providenciou o acesso ao camarote do presidente e destacou uma diplomata que falava português para nos acompanhar.

Assim assisti a Tosca de Giacomo Puccini. O jantar? Foi tarde após este espetáculo, com carne de urso. Mas esta é outra história.

Luiz Henrique era assim. Oportunizava grandezas, conhecimento, amizade. Era generoso, amigo, mas também sabia cobrar resultados. Por isso foi e sempre será grande.

Parabéns, prefeito, governador, senador e amigo.


quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

 Saudades


Todas as manhãs Manoel acordava às 4h30min. Era seu costume, já que estava aposentado e dormia cedo. De noite refeições leves, lia algumas páginas da Bíblia que ficava sempre no criado mudo ao lado de sua cama. Antes de desligar o abajur e rezar e pegar no sono, retirava uma foto que guardava carinhosamente na última página do livro sagrado. Olhava, beijava a foto e guardava no mesmo local. Colocava o livro sobre o criado mudo e esperava o sono chegar.


Ao amanhecer, sua rotina era de aquecer a água fazer o chimarrão, que tomava algumas cuias sentado no pátio em companhia de seus cães, que o acompanhavam há muitos anos. Não importava se havia sol, chuva, calor, frio, tempestade, ventania se arrumava e saia de casa pontualmente às 8h, pois deveria pegar o ônibus na outra rua. Caminhava 10 minutos até o ponto de parada. Ia com esta linha até o centro e trocaria de ônibus que o levaria ao destino final.


Chegou ao centro fez a baldeação e por algumas instantes, enquanto esperava a partida, olhou ao horizonte vendo pessoas transitando, caminhando, comprando, correndo, enfim o burburinho de um terminal de ônibus central. Entorpecido não ouvia, apenas fitava ao longo a movimentação como se não fizesse parte daquele cenário. Só voltou a si quando o veículo começou a andar e o percurso de pouco mais de 6 quilômetros foi completado em 20 minutos com algumas paradas para o sobe e desce de passageiros.

Chegando ao destino, entrou na floricultura comprou um buquê de rosas. Neste dia pediu rosas vermelhas, cor da paixão, do amor do desejo. Não economizou e já solicitou 12 rosas vermelhas. Pediu que a atendente montasse uma cesta com as rosas e decorasse com “mosquitinho” branco, uma planta que é usada em arranjos florais.  A senhora que preparou a cesta de flores até comentou: Ela vai gostar muito desta lembrança!. Manoel nada falou, apenas consentiu com a cabeça e estendeu a mão com o cartão de crédito para o pagamento. Valor perto de R$200,00, o que para ele estava bem salgado visto ser aposentado e ter que esticar os ganhos até o outro mês.


Saiu da floricultura, olhou para os lados, e atravessou a movimentada rua. Chegou ao portão, parou, suspirou e seguiu em diante, caminhou por uns bons metros em uma subidinha de calçada com paralelepípedos irregulares. O calor já começava a sentir e só faltavam alguns metros. Continuou a caminhada sob o forte sol de fevereiro.


Chegou, sentou um pouco. Olhou demoradamente e depositou a cesta de flores em cima do túmulo de sua amada. Limpou a fotografia com um lenço que trazia no bolso. Admirou a beleza de seu amor por toda vida. Beijou a foto impressa em porcelana que identificava onde estava a única mulher que ele amou e só esperava o dia de encontrá-la. 

  • Hoje é seu aniversário e estas rosas são para  você lembrar que fostes meu primeiro e único amor e será por toda minha vida. Me espere. Seremos novamente um só- falou baixinho. Rezou um Pai Nosso e uma Ave Maria, levantou a voltou para casa. Amanhã eu volto!- despediu-se Manoel.

Olé!


Se conheceram na faculdade e ataram um namoro que virou relacionamento sério e confiável. Nunca casaram no papel, sempre tiveram uma boa união, parceria, amizade e cumplicidade. Também sabiam dosar a liberdade. Não era raro fazerem viagens separados para dar um tempo na relação e não desgastar.


Foi assim durante mais de três décadas. Companheiros também de viagem e de bebidas, de planos conjuntos. 


Num ano ele partiu com um amigo por um roteiro que incluia países da África, Europa e Ásia. Percorreram vários países que resultou em um livro de fotografias mostrando o cotidiano de africanos, paquistaneses, indianos e chineses. A cada retorno a saudade esperada e momentos de encanto. 


Trabalhávamos juntos eu e César, casado com Carol. Por uma semana ele andava meio que nem cachorro que caiu do caminhão da mudança, meio caladão e perguntei o que havia.

  • A gata foi viajar. Pegou férias foi para a Europa ficar uns dias - explicou

  • Que legal, mas ela foi de excursão com alguma agência? - questionei puxando conversa na copa onde íamos seguidamente pegar um cafezinho.

  • Não, ela foi com um colega, planejaram a viagem e foram.

  • Um colega homem ou mulher? Perguntei em tom  venenoso e sarcástico.

  • Qual que é, quer saber demais. Deixa de ser fofoqueiro, respondeu com uma risada.

  • Ué, não tem nada demais- despistei.

  • Ela foi com um amigo do trabalho, um colega. Acho que o cara é gay, mas eu confio na gata. Respondeu não dando margem a comentários.

Volta e meia alguém fazia uma piadinha sobre o fato.

 Passados 15 dias fizemos um churrasco numa quinta-feira a noite, pois na sexta era véspera de feriadão e todos sairiam para algum destino

Todos chegaram, cada um trouxe algo para ajudar. Um trouxe cerveja de uma marca, outro de outra marca, gelo, refrigerante, pão com alho, um corte de alcatra, linguicinha, enfim tudo o que precisávamos. E assim adentramos pela noite. Lá pelas 23 horas a maioria já embalado com muita bebida começamos a fase do bate-bola. Cada um contando mentiras, vantagens e novidades. Lá pelas tantas, nosso personagem levanta e pede silêncio. Todos param e ele solenemente queria exibir aos amigos, aos colegas um presente que ganhou da gata dele, que esteve em tour pela Europa e ficou uma semana na Espanha tendo assistido uma tourada na Plaza de Toros de  Las Ventas em Madrid onde se paga cerca de R$ 150 reais pelo ingresso.

Contou que a companheira Carol havia viajado para Espanha e lhe trouxe um souvenir. Abriu a mochila e desenrolou um cartaz, daqueles vendidos nos quiosques de souvenirs de pontos turísticos. Muito comuns em museus e casas de espetáculo da Europa. Era um cartaz anunciando uma monumental corrida de toros em Las Ventas e com o nome do nosso colega estava impresso. Ao abrir o cartaz todos se olharam, imaginaram a cena. Ela com o amigo pela Europa e ele com o cartão de toureiro. Huuummmmm.

Só um gritou lá dos fundos, meio bêbado ainda

  • Olè! Viva o touro. Todos caíram na gargalhada com El Torero que rapidamente enrolou o cartaz, enfiou na mochila e sumiu noite adentro.

Não quero ser pobre



Adriana e sua família sempre foram batalhadores. Gente simples de um bairro pobre que acordavam cedo e saiam a luta. Dona Maria a mãe de Adriana e mais um casal de filhos viviam com o orçamento apertado, já que o pai saiu pelo mundo embarcado. Queria descobrir novos mares. Deixou a mulher e três filhos numa casinha simples que mal tinham dinheiro para os reparos necessários.


As crianças eram saudáveis e bonitas. Adriana era de dar inveja, pois chamava atenção por onde passava. Era uma morena linda de cabelos lisos, que lembra Luiza Brunet em sua melhor fase quando era modelo de uma marca de jeans.


Se fez mocinha e teve de ir para o mercado de trabalho. A mãe trabalhava como faxineira e desde cedo deixava os filhos sozinhos. Cada um que se arrumasse, tomasse café e fosse para a escola. A Adriana mais velha já com seus 14 anos foi procurar trabalho e foi fácil uma colocação, como auxiliar de escritório de uma grande companhia de transportes.


Responsável, estudiosa e bem cuidada. Tratava do corpo, se vestia bem com o pouco que ganhava, era caprichosa com ela mesma e sua beleza natural a tornava uma moça muito linda, atraente, sexy. Educada, sempre com um sorriso e uma boa conversa cativava até mesmo os mais brutos.  Fazia questão de ser simpática ao dar um bom dia, uma boa tarde e leve sorriso no rosto iluminava pode passava.


No terceiro mês de trabalho ela chamou  a atenção do filho do conglomerado de empresas onde ela trabalhava. Ele a viu e a desejou. Era assim mesmo, olhares de pecado para menina. Afinal ele era rico e poderia fazer qualquer coisa. Era o dono da empresa, no melhor estilo coronel do interior que atendia às suas vontades através do poder e da força.


Não foi preciso usar este artifício. Ela também aceitou seus olhares e logo em seguida um romance iniciou. Mas sempre voltava à vida de pobre com os irmãos e a mãe, na mesma casa.Assim foram alguns meses até que o patrão namorador propôs que alugasse um apartamento mobiliasse do gosto dela . Ela escolheu um bom apartamento bem no centro, perto do estádio de futebol. Local valorizado. E com vista para o campo do clube mais querido da região.

Esta é a situação que ela sempre sonhou, Sair daquele bairro de gente pobre, da casa simples e ter seu carro, comprar em shoppings. Poder ter uma geladeira cheia, sapatos bonitos e bancar a madame aos 16 anos. Era tudo que sempre desejara.

Estava feliz, mas seu desejo por intimidade era maior do que tudo. Tinha sonhos, tinha vontade, queria mais do que o companheiro podia dar.

Não demorou muito para assistir aos jogos  e se interessar por futebol que via de sua varanda luxuosa, bebendo espumante, comendo iguarias e admirando o físico dos jogadores de futebol.


Numa tarde de terça-feira, acompanhando o treino, se encantou com o goleiro do time. Nada bonito. Mas era seu sex appeal. Abanou para chamar a atenção dele, escreveu em um cartaz o número do apartamento. Ele entendeu  e após o treino apertou o interfone. Ela disse que liberaria a entrada e o fez. Chegando na porta do apartamento, já estava entreaberta. Adriana sentada no sofá sem qualquer peça de roupa. Não foi preciso falar nada. Tudo aconteceu para atender os desejos de uma jovem fogosa.


Os encontros constantes continuaram acontecendo e também mudando de local para atender os desejos de volúpia da jovem ninfeta. 


Após meses de encontro o fogo e a paixão aumentavam. E os perigos também.


Ela dirigia uma camionete moderna potente, cara, dessas que há poucas em uma cidade pequena, visto o preço deste veículo.


Numa tarde de sexta-feira um motorista de carreta chega na transportadora e fica meio estranho. Olhou o patrão, no pátio da empresa e fez uma brincadeira:

  • Ué, já chegou aqui? Foi igual coelho então? E deu uma risada

  • Do que está falando ? questionou o dono da frota

  • Te vi entrando no Motel ali na BR. E já está aqui, como passou por mim?

  • Você me viu? Quando? 

  • Faz meia hora.

Numa explosão pegou o carro e se dirigiu ao motel indicado. Privacidade para ele que é rico não conta. Meteu o pé na porta e encontrou o que não gostaria de ver.

O atleta de alcova deu no pé, a pé mesmo, afinal estava acostumado a correr nos gramados por horas em dias de sol. Sumiu na bracatinga e  Adriana caiu em choros, em prantos. O marido puxou-a pelos cabelos, a arrastou quarto afora e jogou-a dentro do carro e seguiu para casa. Juntou seus pertences no luxuoso apartamento de apenas um por andar, encheu a carroceria da camioneta e rumou para o antigo bairro onde morava com a mãe e os dois irmãos, antigamente. Ao verem a movimentação, a chegada de um carrão daqueles a vizinhança toda foi para a rua.

  • O marido da Adriana está aqui no bairro, que honra. - uma comentou

  • É muito rico- disse outra

  • Que sorte teve a filha da dona Maria, sair dessa miséria- disse outra vizinha

E se seguiram os comentários até ele parar em frente a casa, descer do carro com fúria, abrir a porta do carona e puxá-la pelo braço jogando-a na frente da casa. Abriu a carroceria e despejou roupas, calçados e bolsas.

  • É isto que você merece. Gritou para quem quisesse ouvir e saiu em arrancada. Ela ficou sentada no chão chorando, prantos e lágrimas que causariam um dilúvio.

  • Eu não quero mais ser pobre. Não quero ficar aqui - repetia insistentemente com a voz fraca, emocionada e triste. Nenhuma das vizinhas foi acalentá-la. Ninguém demonstrou qualquer sentimento de empatia com aquela menina que viram crescer.


Tão parecido



Que bacana! Pensou Eduardo ao receber convite para o reencontro de 30 anos de formatura. Iria rever os amigos, lugares, relembrar a conivência, reencontrar pessoas, ir aos lugares onde morou, rever a universidade, professores, colegas, amigos, vizinhos, relembrar fatos curiosos, alegres e até tristes.


Tinha quatro meses pela frente para planejar sua ida até o distante município onde havia se formado há três décadas. Pesquisou hotéis, formas de chegar, se iria de ônibus, de carro ou avião. Achou cansativo dirigir mil quilômetros, descartou o ônibus que daria quase 20 horas de trajeto. Optou pelo avião que estava mais barato que o ônibus e em poucas horas estaria no destino.


Em um grupo de whatsapp todos já começaram a se reencontrar e conversar, relembrar fatos e situações, mas sempre alguém falava. Não contem tudo, deixem repertório para o encontro. 


Dois dias antes do encontro com cerca de 30 pessoas, Eduardo seguiu pegou o vôo, chegando no município fez check in no hotel do centro, perto do calçadão para poder caminhar e rever os locais onde conviveu por alguns anos enquanto cursava a universidade. Nada mudou nestes anos todos. O centro histórico é igual, mas o mercado público foi reformado e ficou muito melhor, as ruas antigas de paralelepípedo trazem lembranças das travessias em direção a praça central para o chimarrão dos domingos à tarde.

Caminhando um pouco mais chega ao tradicional Café da cidade, onde todos se encontram para um cafezinho ou um lanche. Pediu algumas fichas no caixa, pois se paga antecipadamente pelo consumo. Chega no balcão e as atendentes trazem a xícara quentinha, esterilizada e com um café de aroma inebriante. Ao levar a xícara aos lábios para tomar o primeiro gole, suas papilas estavam em êxtase estimuladas pelo aroma, o olfato entrava pelas narinas e tomava conta de seu corpo. Isto sim é um café. Antes que a porcelana da xícara tocasse seus lábios ele ouve: Oi, você lembra de mim? Ele não queria parecer bobo e confirmou. Claro que lembro - disse. Como você está? Vim para nosso reencontro. Que bacana , que bom te rever. Vamos tomar um café- convidou ela. Ele pegou mais duas fichas no bolso e entregou para a garçonete para que servisse o café.

Sentaram numa das mesinhas e começaram a conversar, aos poucos ele foi lembrando daquela moça, dos tempos de faculdade, das festas. Recordou como se fosse um lampejo divino iluminado da noite que passaram juntos. Foi após uma festa na danceteria ( anos 80), embalados por vinho de qualidade duvidosa acabaram num dos colchões da república. Foi uma noite boa sim, Mas foi só uma vez que estiveram intimamente juntos, já no último ano de faculdade. Cada um foi para seu lado e seguiu seu destino.

Logo em seguida chega um homem que olhando fixamente para mesa se aproxima. Bom dia, disse e todos responderam. Ela abraçou-o e disse que queria apresentar o filho dela ao amigo Eduardo. Achou o rapaz com características físicas muito familiares.. É meu filho. Fez 30 anos em dezembro. 

Atordoado, Eduardo questionou: Porque nunca me falou nada, nunca me procurou? Te procurei, te escrevi, nunca obtive respostas, nenhum retorno seu- ela respondeu. E também não quero que ele saiba. Nunca me casei, e vivo para meu filho. Não estrague tudo. Alertou a ainda bela uruguaia que um dia iluminou sua noite..



Amante Argentina



Todos os dias era a mesma coisa. Cera para lustrar o carro, panos macios, aspirador, líquido para deixar os pneus bem pretos. Não podia haver uma poeira naquele veículo. Parte de seus ganhos iam para a manutenção do carro e até sacrificava a família para que o possante ficasse reluzente, lustroso, bonito e arrancasse elogios da vizinhança e das pessoas que viam o carro pelas ruas, pela praça e até em encontros de veículos nos finais de semana.


A esposa já cansada daquela rotina. Faltavam algumas coisas na casa, havia necessidade de consertar o telhado que apresentava várias goteiras. Em dias de chuva corria com bacias e com baldes para aparar a água que passava pelas telhas quebradas, ultrapassava o madeirame, o forro e jorrava feito cachoeira em alguns pontos dentro de casa. Começava a apodrecer a madeira e deixar todos em risco de acidentes. E o marido fazia cara de paisagem como se nada fosse com ele. Tudo isso apoiado pelo pai que também gostava do carro antigo. As noites eram de conversar como estava bonito, ver o que poderiam fazer, pequenos consertos. Onde iam buscar peças ou mandar fabricá-las.

Assim passavam dias e noites, semanas e meses. Sem falar que do pouco orçamento familiar tirava dali para manter o veículo fabricado nos anos 30. Foi icomprado há uns 20 anos em um ferro-velho e desmontado em casa mesmo, usando a garagem. Ali pai e filho construíram o carro como original. Lixaram e pintaram casa, peça, reconstituir o motor, tapeçaria, pintura . Era a jóia da coroa.


Churrasco de final de semana, comemorações de aniversário ou até mesmo aceitar um convite para festa do vizinho ou parente era impossível.

  • Não podemos gastar! Sentenciava o marido que a deixava cada vez mais triste, abandonada e desejosa de viver.

Ela era uma mulher bonita, elegante, que chamava a atenção, mas não podia sair para se divertir em família, um passeio, um cinema. Almoçar ou jantar fora era um sonho muito distante que até tinha perdido as esperanças de isto acontecer algum dia. Sozinha em sua solidão de seu claustro que ela dominava da cozinha até a área de serviço, sonhava em conhecer o mar e caminhar na praia, já que moram em uma cidade distante 600 quilômetros do litoral.

Como seria poder sentir a areia nos pés, a água salgada bater em suas canelas e o sol aquecer seu corpo e lhe dar uma cor mais saudável que certamente a deixaria mais bonita. Era uma mulher que chamava a atenção por seu porte e elegância, mas também se notava a tristeza em seu olhar da prisão doméstica, das privações e de nada poder sonhar, afinal sempre faltava dinheiro para tudo. 


Diariamente o sogro chegava às 17 horas com uma cuia de chimarrão apra esperar o filho que em breve estaria em casa. Começaria mais uma longa noite de alisamento ao carro, de admiração a um veterano das estradas, enquanto lhe restava preparar o jantar, depois lavar a louça e panelas e só depois poder descansar. Até quando isso iria? Este seria o seu destino? Sua vida estava divida. As atenções eram só para o carro antigo e seu alto custo.

Após mais um final de semana de nenhuma mudança, no domingo de manhã por volta das 9h chega o sogro e encontra o filho em prantos. Alguma tragédia aconteceu, o que será que houve. Abriu o portão com uma das mãos enquanto na outra segurava a cuia de chimarrão e a garrafa térmica de cinco litros. 

  • O que é que houve piá? Porque está chorando que nem criança que perdeu o pirulito?

  • Pai houve uma tragédia. Eu quero morrer, não posso viver mais.

  • Mas o que houve? Qual é a besteira que você fez?

  • Veja só. Estendeu a mão e entregou um bilhete ao velho, que mudou de cor, empalideceu, sentou numa cadeira de palhas já gasta. Só retirou algumas lixas já sujas de ferrugem  e começou a ler:

“ Meu estimado. Não aguento mais viver desta maneira. Te amei e respeitei enquanto pude. Estou morrendo a cada dia.  Tudo o que você ganha gasta nessa lata velha.

Vou viver. Quero pisar na areia, conhecer o mal e sentir a brisa em meu rosto. Quero o sol por testemunha da alegria que vou sentir.  Agora você e seu pai terão todo o tempo do mundo para sustentar este carro velho que é mais caro que uma Amante Argentina. Adeus”.










Ele só me atenta



  • Quero “dar parte” da minha mulher! - disse Valter na Delegacia da Mulher, bem cedido, onde chegou de madrugada pra ser o primeiro atendido.

  • Então o senhor sente e me conte o que houve - ordenou a funcionária que faria o BO - Boletim de Ocorrência.

  • Quero denunciar minha mulher que me atacou com uma tesoura e me furou. Queria me matar. Relatou o nosso amigo e meio envergonhado levantou a camisa para mostrar as pontadas de tesoura, já que a mulher era costureira e aproveitou o que tinha na mão para afastá-lo.

  • O senhor espere um pouco que este caso vou ter que falar com a delegada - orientou a escrivã.

  • Me acompanhe, por favor. E lá foi ele na sala da delegada que pediu que ele contasse a situação. Orientou que chamaria a esposa para ouvir a versão dela.

No dia da audiência de dona Maria, lá ela se apresentou, com uma Bíblia embaixo do braço, vestido comprido até a canela, cabelos presos, óculos grossos e um cardigan de lã com bolsos onde ainda tinha dedal, retrós de linha e agulhas e alfinetes enfiados na lapela. Instrumentos de seu ofício de costureira.

Apresentou-se na Delegacia da Mulher e mostrou o papel da intimação. Foi encaminhada diretamente para falar com a delegada.

  • Bom dia dona Maria. O seu Valter esteve aqui contando que a senhora atacou ele com uma tesoura, me conte o que houve. Foi verdade ou ele está inventando?

  • É verdade doutora. - respondeu

  • Mas qual o motivo? - indagou a delegada abismada com a sinceridade da resposta, porque em 99 % dos casos é a mulher a vítima.

  • É que ele me atenta.

  • Mas o que ele faz? De grave?

  • Ele me atenta, já lhe falei.

  • Mas ele é ruim, violento?

  • Não! É um bom homem e me deixa todo o salário dele.

  • Então não entendo, ele abusa das filhas? Provocou a delegada para investigar as causas.

  • A senhora “ tá loca?” Já falei que ele é bom, trabalhador e respeitador.

  • Estou perdendo a paciência! Endureceu a delegada. O que ele fez de grave para a senhor avançar com a tesoura e tentar matar seu marido?

  • Ele me atenta! Me atenta! Não quero isso. O pastor disse que é pecado. - confessou dona Maria.

Daí a delegada entendeu do que se tratava. Nosso amigo só queria um momento de carinho, atenção e quem sabe um beijo, após tantos anos de casamento. Tanto atentou até que sofreu um atentado. Haja amor! kkk


O pensamento vai longe na fumaça do palheiro


O dia amanheceu com os campos cobertos de geada, a cerração não permitia ver muito longe e só lá pelas 9 é que o gelo estaria derretido e daria para começar alguma atividade. Olhou pela janela, apreciou a beleza do inverno do cerro branco que sempre admirou e contemplava a magnitude do lugar deixada pelo Criador.

Sentou no seu tradicional banquinho abriu a porta do fogão à lenha e iniciou a principiar o fogo. A caixa de lenha estava cheia com madeira seca. Na semana anterior chegou um caminhão de árvores de desmatamento de uma granja do município vizinho de  Quatro Irmãos, já havia aproveitado os dias de sol e frio para serrar e com o machado deixar tudo cortado e empilhado no porão para aos poucos ir queimando durante o inverno.

Portinha do fogão aberta, colocou dois pedaços de lenha, gravetos e uma folha de jornal Correio do Povo já lido enrolado. As folhas eram grandes do tempo que se fazia jornal formato Standard. Tirou do bolso uma caixa de fósforos da marca Guarany e os gravetos e grimpas secas pegaram fogo logo se alastrando pela madeira. Chaleira em cima da chapa para aquecer a água do chimarrão. O vento batia numas latas de óleo Primor, da Samrig, penduradas no canto da casa para alguma serventia futura.

Fogo feito, água aquecendo sentou tranquilamente e puxou a faca prateada Soligen uruguaia, bem afiada. Faca bonita com punho cravejado de pedras semipreciosas e bainha da faca feita em couro curtido e com desenho feitos a fogo.

Sobre o fogão havia um fio de arame como se fosse um varal, Ali ficavam penduradas roupas para secar, cascas de laranja e maçã para um chá e as palhas de milho que ficavam secas e amareladas. Num prego na parede uma volta de fumo em corda. Mais parecia uma negra cobra descendo pela parede. Fumo preto em corda vindos de Sobradinho e que era vendido num depósito de fumo e bananas no porão de uma loja ali no centro.

Lentamente pica o fumo com a mão e coloca sobre a chapa do fogão a lenha quente para secar. Enquanto o fumo seca um pouco,  pega uma palha de milho do arame de cima do fogão corta as pontas e alisa a folha dos dois lados com a lâmina da faca. 

As mãos calejadas de tantos anos de trabalho, veias saltadas e sulcos profundos esfregam o fumo entre as mãos em movimentos rotatórios até que os pedacinhos se soltem. Pega a palha seca e cortada e segura com os dedos da mão esquerda em formato cilíndrico. Com a mão direita coloca lentamente o fumo em corda por toda a extensão da palha. Bem distribuído agora enrola com todo o cuidado e  passa nos lábios para selar o seu palheiro. Abre a portinha do fogão e encosta a ponta do palheiro recém feito. Acende rapidamente.

Levanta de seu cepo que ficava sempre frente a porta do fogão vai até a janela e observa os primeiros raios  de sol derreter a geada. Leva o palheiro na boca, fuma lentamente e deixa a fumaça levar seus pensamentos para o horizonte, reavivar memórias. Mergulha em seu passado, em suas saudades, suas lembranças  o que fez e o que gostaria de ter feito. A fumaça do palheiro se mistura do seus pensamentos, olhos cheios d'água que poderiam ser de suas lembranças, de suas tristezas, mas que se alguém visse diria que era por causa da fumaça. Poucos minutos de contemplação, pensamentos distante são despertos pelo chiar da chaleira. A água está pronta para o mate. Serve a cuia, senta novamente no cepo de cerne de angico e fica a olhar pela janela. 

  • Será que um dia meus filhos terão tempo para me visitar? Resmungou cutucando o cusco que estava deixado no quentinho ao lado da caixa de lenha. O cachorro só olhou baixou a cabeça, meteu o focinho no pelego de ovelha e desviou o olhar para o chão. Também não tinha a resposta.



O MISTÉRIO DO SUMIÇO DAS CERVEJAS


Nos anos 80 quando eu cursava o segundo grau no JB, de Erechim, era muito amigo do Paulão, um investigador da polícia civil. Gente boa, bem humorado e tinha um opala quatro portas, 6 cilindros. Ou seja, bebedor igual o dono.. Ele queria um dia ser delegado de polícia. Cursou Direito em Cruz alta, na época as aulas eram nos finais de semana. Fazia o trecho de 230 quilômetros toda semana. Mas eu saí de Erechim e perdi contato com ele, mas a história envolve investigação profunda, já que o furto foi na casa do investigador.

Era comum as pessoas comprarem engradados de cerveja, caixas que vinham com 24 garrafas de 600 ml. Alguns exibidos iam até Getúlio Vargas comprar direto na Serramalte, que tinha um posto de vendas junto a fábrica.

Ele morava em um apartamento ali na Maurício Cardoso, esquina com rua Alemanha, num prédio que funcionava o antigo Mercapaulo - Banco Mercantil de São Paulo. E aos poucos foi notando que seu estoque de Serramalte estava diminuindo. Mas como, tinha tantas caixas e algumas com garrafas faltando. O gatuno tirava um ou duas garrafas por engradado para “não dar na vista”. 

Desconfiado e puto da cara, afinal a bandidagem não perdoa nem casa de polícia! Não teve dúvidas, abriu uma investigação no melhor estilo Sherlock Holmes, que deixaria até Hercule Poirot.

Iniciou desconfiando de uns pedreiros que estavam trabalhando no prédio e tinham acesso pelos fundos para uma área de serviço onde estava o precioso líquido engarrafado. Interrogou, deu uma prensa e nada. Não foram eles. Tirou algumas horas para fazer “campana” na própria residência. Mas não tinha muito tempo para investigar o sumiço de sua cerveja, já que trabalhava em plantões, aulas de noite e as garrafas continuam esvaziando. E o larápio tinha o cuidado de colocar a garrafa vazia no lugar e com a tampa fechada. Só esvaziava no gut”gut!. 

Só que num sábado de calor, resolveu se esconder na área de serviço, num cantinho e esperou horas ali. Lá pelas quatro da tarde ouviu passos e uma mão trêmula agarrou firme uma Serramalte. Peguei o ladrão! Agora não me escapa - pensou. E pulou do canto onde estava, escondido coberto com um pedaço de lona:

  • Mãe! O que tá fazendo. É a senhora que rouba minha cerveja?

  • Te aquieta guri. Não tô roubando nada. Tá aqui, tem bastante e vim beber uma. Tá calor - justificou a senhora de 80 e poucos anos.

Desfeito o mistério e encerrada a investigação. Nem precisou inquérito. 

A viúva do cunhado


Na periferia de Joinville há um universo totalmente distanciado da realidade que vivemos na área central e são mundos densos, que envolvem amor, traição, contravenção, vingança e guerras de facções criminosas. Molho especial para uma ótima trama de filmes tipo tiro, porrada e bomba que fazem sucesso nos cinemas.

Creusa (é assim mesmo) Creusa já foi uma moça atraente, daquelas que ainda adolescente entram num shortinho três números menor e nem se importam com o frio. Blusinha curtinha mostrando o piercing na barriguinha e apenas com uma sandalinha. Não tem onde morar e nem o que comer, mas ostenta um IPhone 11 com fone de ouvido e spotify. De onde grana? Acho que de admiradores que a cortejam. 

Mas a beleza da juventude já deixou suas marcas em menos de cinco anos. Já é uma velha aos 19/20 anos com dois filhos para sustentar sozinha. Viúva, sem profissão e sem recursos. Mas o plano de internet do Iphone não pode faltar. Comida para os filhos? A lamentação é sempre a mesma.

Mas nossa personagem está aflita, tensa e com medo. Quer resolver logo sua vida. E precisa de um novo marido para pagar as contas. Com 30 anos certamente vai estar com 8 filhos e com cara de 100 anos.

Ocupante de um imóvel no Ana Júlia, que é uma urbanização na periferia sul de Joinville, ela quer alterar o cadastro para tirar o nome do marido. Mas a coisa não é tão simples. Há um cadastro, legislação a cumprir e uma série de procedimentos legais.

Ao ser atendida, aflorou a atriz. Sim! Esta turma sabe agir com maestria frente ao palco dos serviços públicos.Se precisar choram. Fez beicinho de emoção e contou a real situação para ser atendida em tirar o nome do traste do contrato do imóvel.

De uns tempos para cá o marido que se chamava Paulo, que um dia foi só amor, satisfação e intimidade que resultaram em dois filhos e o envelhecimento precoce da Creusa, estava mudando.

Era sabichão, metido, festeiro e saliente. Começou a ficar em casa, cortinas fechadas e o dia todo na TV. Assistia Ana Maria Braga, Sessão da Tarde, programa do Datena, Ratinho e não saia nem para ir ao bar. Uma vez passou uma Yamaha com escapamento aberto que parecia uma metralhadora. Saltou para baixo da cama e não queria sair.

Há uns três anos um filho pediu que o pai Paulo fosse comprar um lanche, comer algo diferente. Paulo chamou a Creusa e foi só o casal. Trariam o lanche para a piazada. Tirou o Gol bege velho da garagem e foram em direção a Kurt Meinert. Estava com uma estranha sensação de que alguém estava seguindo, sendo observado. Imaginou, que deveria estar ficando louco, que era cisma.  

Quando uma CG com dois caras usando balaclava se aproximaram ele pressentiu que chegou a sua hora. Instintivamente abriu a porta e empurrou Creusa para fora. Ela caiu se machucou bastante, porém sobreviveu assistindo o fuzilamento do marido. 

Abalada, procurou a Delegacia “deu parte do crime” e retornou para casa.

Tentou retomar sua vida. Tudo seguia tranquilo até que sua casa foi atacada a tiros. Os assassinos souberam da sobrevivente e não queriam testemunha. Já havia prêmio pela cabeça dela.

Sumiu da noite para o dia com os filhos até tudo se acalmar.

Mas Creusa tinha de voltar para resolver algumas questões e esclarecer seu maior segredo.

Paulo não era Paulo. Era Juarez. O marido havia usado documentos roubados do irmão que é fichado, membro de facção e de alta periculosidade.

E para piorar a situação de Creusa, ao chegar em Joinville para esclarecer todos pontos e retomar sua rotina, descobre que está com câncer no cérebro devido às sucessivas pancadas na cabeça com a coronha da pistola que o marido lhe agredia.Certa vez a surra de coronha de pistola foi tão forte que ficou em coma alguns dias. Advogados não querem sua causa, sabedores que são da verdadeira identidade do cunhado que teve os documentos usados indevidamente para o casamento. E para provar a verdade precisaria estar frente a frente com o pistoleiro da facção Juarez e fazer a exumação de Paulo e através de exames provar o que está contando.

Triste fim daquela garota que parava o comércio quando passava na Kurt Meinert com seus shortinhos e blusinhas.. Desgraça pouca é bobagem. Isto é  a vida como ela é!







Bode com o diabo no couro


Na década de 70, ali na Floresta,bairro da zona sul de Joinville, houve um caso do bode que estava com o diabo no couro. Era coisa de dar medo. Volta e meia o bicho se rolava no chão, dava cabeçada num pé de bananeira, na madrugada deitava de barriga pra cima parecia apreciar a lua e dava gargalhadas na língua de bode, é claro.

A dona do bode era uma irmão de um colega. Ficou preocupada, afinal o que houve com este bode. O bicho já tem fama de ser servo daquele que vocês sabem. Pelo menos é o que contam. Nos terreiros fazem oferendas com o sangue de bode. Nos livros do coisa ruim, sempre imagens do bode como encarnação do filho de uma rapariga.

Religiosa apostólica romana, fã do Dom Gregório, rezava desde cedo e o comportamento do bode começou a ficar aterrorizante. Pensou em procurar Dom Gregório que atendia à todos. Mas imaginou: - Levar um assunto desses ao Bispo, vai achar que sou louca. Conversou com algumas comadres que sugeriram vá lá no Padre Bertino, ele é muito querido e vai e orientar. Deixou alguns dias e criou coragem.

  • Comadre, vou lá no Padre Bertino pedir para fazer um exorcismo no meu bode. Ganhei ele de meu pai e não quero me desfazer do bichinho.

  • Deixa disso vamos passar a faca no bode e fazer um churrasco.- aconselhou a vizinha.

  • Estás doida? Vou falar com o padre para tirar o coisa ruim daí. O Cristiano é da família sua louca- Insistiu.

Decidida no pedido de exorcismo comentou em casa. Só que o irmão da dona do bode, nosso colega tratou de tirar esta idéia absurda. Imagina o padre paramentado, com estola, água benta nos fundos do pátio pedindo para o bode repetir as palavras santas. Imagina se a história chega no Vaticano. Pior! Ter que noticiar no nosso jornal.

Enquanto isso o bode véio lá atrás de um pé de bananeira de-lhe chifrada e rolava no chão. Balia olhando a lua. Ficava amarrado na cerca de mourões de eucalipto e arame farpado. O irmão, que tinha apelido de Cachorro, sabia qual era o encapetamento do bode.

O bicho ficava faminto, sorridente e endemoniado sempre após a visita de outro colega, geralmente nas sextas após o fechamento do jornal. Alguns iam na casa do Cachorro que morava com a irmã e assavam umas asinhas de frango, sardinhas o que desse com os poucos recursos. Alguns iam na cerveja e outros na cachacinha de um alambique artesanal ali de Araquari.

E um dos colegas, gostava mesmo é do encapetador. Pois é. Já sabem né. Não se interessava pela comida e bebida escassa e pelas conversas repetidas de sempre. Seu local preferido era um cantinho nos fundos do lote atrás de um rancho onde guardavam quinquilharias, ferramentas, bicicleta velha, latinhas e vidros vazios. Vai que se precise um dia.

E ao lado deste rancho tinha um pé de banana viçoso, sem nenhuma fruta, pois o danado do bode sempre faminto pelava o pé. 

Sentado num cepo, tranquilamente este colega enrolava um cigarrinho do capeta em folhas secas de bananeira. Tudo natural ou diriam hoje ôrgânico. Fumaça forte do charuto que daria inveja aos cubanos.

A irmã do Cachorro sentia aquele cheiro de fumaça e questionava. - O que é isso. De onde vem este cheiro? 

  • Deve ser alguém queimando mato por aí - despistavam.

Em breve começava a sessão que requeria o exorcismo. O bode doidão balia, se rolava no chão e chifrava o pé de banana. Pronto! Baixou o coisa ruim.

Felizmente não foi necessário levar o assunto para as autoridades eclesiásticas e nem dar conhecimento ao Vaticano. Solução caseira. Chamaram uma mão de santo ali do Fátima que deu uns passes e trouxe uma garrafada milagrosa. Fez o bode beber até o último gole e aconselhou:

  • Este bode precisa de tratamento. Vou levá-lo! Sentenciou a macumbeira toda de branco.

  • Nunca mais souberam do paradeiro do bode.


Pescaria em Corumbá


Planejada a viagem entre os amigos, tudo pago e um importante cidadão, que vamos chamado de Antonio, viu o roteiro de 1.551 km a percorrer atravessando Paraná, São Paulo e Mato Grosso até chegar no pesqueiro em Corumbá, foi rápido na decisão. “Estou com uma crise de ciático e não aguento tudo isso num banco de ônibus”, justificou. E a dor, de acordo com ele era pior que dor de parto. Tinha ido em clínicas particulares e até em benzedeira afamadas, tomado garrafada e nada.

Combinou que iria até São Paulo de avião, lá pegaria outro vôo com destino a Campo Grande. Encontraria lá na capital do Mato Grosso do Sul  o grupo que viajava num moderno ônibus leito de dois andares fabricado pela Busscar.

No dia marcado, bem cedinho a turma do ônibus sai rumo ao Paraná. Seguem pela BR 101, entram em terras paranaenses até a primeira parada para o almoço em Ponta Grossa. Mas nesta parada tinha uma novidade. Lá embarcaram um grupo de “comissárias de bordo”. Serviam, entretiam e só não levaram aparelhos de medir pressão. Bem. Afinal, nenhuma saberia manusear ou saber o que significa 12/8 ou 20/10. Aí a viagem começou a ficar animada. Deviam dar parabéns ao “manager” que planejou a viagem, pensou em quase tudo.

E dá-lhe estrada. Rodas comendo na BR 376 até lá em Mauá da Serra onde se pega a rodovia estadual 445 em direção a Londrina e vai em direção ao oeste de São Paulo. Atravessa o Paranapanema, passa a lo largo de Presidente Prudente e come mais asfalto. Enquanto isso, alguns dormem babando de boca aberta, outros no carteado embaixo e os mais astuciosos no belvedere apreciando a viagem em boa companhia, Belvedere porque dá para ir vendo a viagem naqueles janelões do andar superior bem em cima da cabine do motorista. Deita, apoia os pés no vidro e toca a viagem. Passa Prudente, passa Venceslau e segue em Presidente Epitácio onde se atravessa a grande ponte de 2.550 metros que liga os estados do Paraná e Mato Grosso do Sul. É um marzão de água doce, coisa mais linda do mundo. Tem muito chão pela frente.

Dez horas depois o possante de  dois andares fabricado em Joinville entra no pátio do Posto América 2, perto do autódromo. Lá estava o personagem do nervo ciático com sua malinha de mão. Chegou no aeroporto, pegou um táxi e ficou esperando no posto. Finalmente os pescadores chegaram. Dalí pra frente mais 500 km e chegariam a pescaria. Alguns desceram para esticar as pernas, outros ficaram no ar condicionado do ônibus por que naquele desertão de terra vermelha às margens da BR 262 o calor estava de riscar chifre no asfalto.

Vamos lá pessoal, vamos chegar ainda cedo. Vamos subir - ordena o chefe da equipe. E Antonio com dificuldades de subir ao segundo andar, já que as escadinhas são estreitas e em formato de L recebe ajuda com a malinha e lá se foi degrau por degrau.

Escalados os difíceis degraus da escada interna do ônibus, que naquela altura parecia escalada do Aconcágua ou do Everest, Antonio meio cansado se deparara com o resto da turma e lá do belvedere uma voz feminina esfuziante grita e vem correndo abraça-lo;

  • Antonio, você aqui, que saudades! - ele não acreditou.

 Seguiu a viagem no belvedere. É difícil se esconder  até com 1.500 quilômetros de distância. O manager deveria saber se a “comissária de bordo” já havia trabalhado por aqui. Sim esta havia prestado serviços na Barra Velha e conhecia a maioria dos pescadores.





Velórios de antigamente


Definitivamente não se faz mais velórios como antigamente. Eram acontecimentos onde se reuniam amigos, parentes, conhecidos e desconhecidos. Alguns iam para ocupar o tempo ocioso ou para se divertir um pouco.

Os velórios eram realizados nas residências das famílias, e o extinto ficava em posição nobre no meio da sala com os pés para a porta da frente, geralmente no meio de quatro velas. E o dito velório durava de um dia para o outro. E as notas fúnebres lida nas rádios fazia eco. Um contava para  o outro. Mandavam até para rádios de outras cidades onde se sabia que tinham parentes.

Vinham parentes distantes para se despedir, vizinhança se revezava, a viúva dava chiliques e era amparada pela comadres e parentagem. Ou o viúvo ensaiava algumas lágrimas sob os olhares atentos de novas pretendentes. 

  • Que pouca vergonha, a fulana nem esfriou e a vizinha já está “espichando o olho” para o viúvo - comentavam as jararacas.

Não se faz mais velórios como antigamente!. Ao anoitecer vinha mais gente e a cozinha era o local melhor da casa, ali estavam fazendo alguma comida boa para servir aos que vinham e iam e para os que passavam a noite. No pátio, nos fundos da casa sempre tinha um grupo com chimarrão, pipoca, pratão de bolacha Maria, um garrafão de vinho, uma cachacinha e no fim virava cantoria e contação de piadas. E aí atravessava a noite. 

A seriedade voltava com o alvorecer. Alguns iam trabalhar curtidos pela noite, outros tomavam tenência e se chegavam perto do caixão. Afinal mais tarde o padre vinha para a missa de corpo presente.

A chegada do sacerdote era algo esperado e importante. Afinal conseguir um padre para ir em casa era muito difícil. As relações de amizade contavam, pois geralmente alguém ajudava na Igreja, ou era aparentado do líder religioso. Já o recebiam lá na rua e vinham em cortejo, entre choros e lamentações. Missa boa e válida tinha que ser com o Padre, nada de seminarista ou diácono. Para encomendar a alma e levar o distinto (a) para o Céu, só valia as bençãos de um Padre formado no Seminário.

Feita e encomendação, caixão fechado, choradeira, desmaios, corre-corre, vinha outra parte divertida. Às vezes atrasava para esperar um parente ou um filho que ainda não chegou para o último adeus.O cortejo. Seguiam o carro funerário os veículos e depois os ônibus. Sim, colocavam ônibus para os amigos que queriam dar seu último adeus. Se media a importância do morto pelo número de carros no cortejo. Alguns paravam o trânsito e o comério. De tão lindo o cortejo até parecia desfile de 7 de Setembro.

Eu gostava de ir nos velórios para andar de ônibus. Uma vez um colega passou na frente da minha casa e disse: - Vamos a Cotegipe (município distante 12 km) o ônibus vai e volta. O vizinho da rua ali de cima morreu e vai ter missa de corpo presente. - Não pensei muito. Vamos lá conhecer. Na época não tinha asfalto. Estrada ruim esburacada e lá se foi o cortejo com ônibus quase lotado. Chegando em Cotegipe, todos foram para a Paróquia Nossa Senhora do Rosário, bem no centro. Eu e meu colega foram para o turismo pelas ruas do pequeno município. Não podíamos perder o ônibus para voltar. Andava uma quadra, esticava o pescoço para ver o movimento na porta da Igreja. 

E eu nunca soube quem era o vivente que se foi. 



Tristeza no olhar


Andando pelas ruas de minha cidade - Sim! Minha cidade! Nasci em Erechim, no Rio Grande do Sul, morei em várias cidades mas me estabeleci em Joinville. Portanto sou Joinvilense. - percebo o surgimento de novas casas de repouso para idosos. Algumas são meros depósitos de velhos, jogados numa cadeira ou “sentados no trono com a boca aberta esperando a morte chegar”, parodiando o magnífico poeta futurista Raul Seixas.

Semanalmente alguém comenta: - Fulano está no asilo. Mas daí a gente pensa. Mas ele? Era bem sucedido, dono de empresas, casa aqui, na praia, bem posicionado. Mas precisaria estar numa “casa de repouso”?

Colegas de profissão também acabam tendo de se abrigar em recintos assim.

Perto de onde eu trabalho, onde fica a “repartição”, no bairro Bucarein há várias dessas casas. Geralmente eram residências que passaram por uma pinturinha e colocaram  a placa na frente. Assim é no Bucarein, Anita Garibaldi e parte do Atiradores. 

Confesso que o coração fica apertado ao passar em frente e ver aqueles olhares tristes, sem brilho, distantes, saudosos. E me pergunto. Será que meu fim também vai ser assim? Largado, abandonado, esquecido? 

Estamos vivendo mais. A vida está se prolongando graças a Medicina e aos cuidados que estamos tendo com base na consciência de fazer consultas e exames regulares, um pouco de exercícios e alimentação controlada. Chegar aos 80 já é normal. Chegar aos 90 em breve será coisa comum. Quando eu era criança, uma pessoa com 50 anos era velha. Hoje a “terceira idade” está fixada em 60, mas o governo quer empurrar para os 65. Porém nem todos contam com uma boa saúde, com afeto, carinho, atenção. Às vezes a pessoa só quer um bom dia, uma conversa, alguém que note sua existência.

Tenho curiosidade de saber quem foi o FDP que inventou o termo “melhor idade” deve ser um grande FDP. Babaquice ao quadrado. A dita melhor idade vem com abandono, com custos elevados de remédio, internações, tratamentos, depressão. Planos de saúde exorbitantes e as dificuldades naturais do envelhecimento. Para piorar um governo de burocratas acostumados com vida fácil em gabinetes acarpetados e com ar condicionado, querem obrigar o povo a trabalhar até os 65/70 anos. É canalhice da pior espécie.

O futuro do abandono já chegou. Os filhos seguem seus rumos. Estamos cada dia mais individualistas e sem paciência para o mesmo teto. E se o “velho” tiver parkinson, sequelas de AVC, Alzheimer, enfim doenças da velhice? 

Os governantes precisam colocar em seus planos de governo não só cheques públicas, mas asilos/casas de repouso públicas também para quem não pode pagar. No futuro teremos mais idosos do que crianças.

Nascemos de fraldas e terminamos com fraldas.

E assim caminha a humanidade.








Nem este salva o Brasil


Mãe e filha já estavam sentadas almoçando e conversando. Cheguei escolhi o lugar na frente delas, pois a mesa estava limpa, tinha lugar e dispensário para guardanapos.

  • Mãe, me liga, né? Vem almoçar comigo mais vezes - convida a filha, em tom carinhoso. Você nem responde minhas mensagens - insiste a filha.

  • Mas eu tenho fome, gosto de comer cedo e você só pode mais tarde.

  • Mas perto do meio-dia eu sempre posso, garante a filha.

  • Mãe, fala alguma coisa me conta o que anda fazendo?

  • Estou com fome! Estou comendo.- responde a senhora de uns 60 anos, cabelos brancos naturais escorridos, rosto lavado, sem maquiagem, sem batom, sem adornos ou acessórios. Nenhuma vaidade aparente. Segue comendo arroz, feijão, macarrão, carne moída com molho, alface e abobrinha.

  • Mas me fala alguma coisa? Insiste a filha de uns 30 anos.

  • Estou lendo livros.

  • Qual, mãe, me diz que vou ler também...

  • Jesus para Presidente - respondeu levando mais uma garfada para boca.

  • Que lindo mãe!  Vou querer ler também. Depois a senhora me empresta. Completou a filha que vestia uma blusa leve em tom de zebra e mangas de tule. No pescoço uma corrente prateada com imagem de Nossa Senhora.

  • Mãe, me espera. Enquanto isso a mãe já tinha terminado, levantado e foi entregar o bandejão. Pressa de sair dali. Poderia ter pelo menos esperado a filha terminar. 


Jesus para Presidente? Avisem o candidato antes que no Brasil são 513 deputados federais, 81 senadores, 27 governadores, milhares de vereadores e centenas de deputados estaduais.

Vai faltar milagre ou 30 moedas de prata. 


Deus Negro  


Alcebíades desprezava duas raças. Negro e polaco não tinham serventia. E repetia para quem quisesse ouvir: O polaco é o negro do avesso. Nutria ódio inaceitável.

Fez fortuna, graças ao seu tino comercial. De pouco estudo, mas esperto, filho de colonos foi para a cidade, nos anos 60 deu um “peitaço” e comprou um caminhão Chevrolet  fiado para transportar feijão. Trabalhava dia e noite. Virou cerealista com capital.

Tinha visão de comércio e do que a cidade precisava. Até então tudo era vendido em pequenos mercados, armazéns, bodegas e bodegões. As lojas de secos e molhados vendiam de tudo. Desde o parafuso até remédios, muitos até vencidos, mas afinal “o que não mata, engorda”. 

As comunidades eram formadas de italianos, judeus e alguns poloneses que na visão dele, eram cachaceiros e faziam o serviço tipo “polaco”. Já os negros, sempre repetia: se não fazem no início, fazem na saída. “ era um sujeito odioso, racista, homofóbico (na época nem existia este termo). Mas sabia ganhar dinheiro. Criava empresas, empregava gente: menos negros e polacos. Era regra nas empresas.

Todos os dias ia para o trabalho a pé para não gastar gasolina nem as borrachas dos pneus do carro. Seguia pela mesma avenida e todos os dias desprezava um negro que varria a avenida da cidade. Era um gari da Prefeitura. Passava, sempre escarrava, dando  a entender que nem para aquele nobre serviço o tal negro servia.

Algo atormentava sua alma. Sua única irmã gostava de homens negros. Tinha verdadeira paixão pelo Pelé. Claro que era um sonho inimaginável. Mas na solidão do quartinho dela, sonhava com uma companhia. Morreu solteirona e virgem, mas sonhando com seu rei da cor de ébano. 

Assim se passaram muitos anos. Alcebíades não perdia a missa aos domingos. “Porco Dio, estes padres tudo do PT.”, resmugava às 11h ao sair da missa, mesmo sendo primo do padre. Não queria gastar, ia a pé até seu mercado para ver se todos estavam trabalhando. 

Esta era a rotina. Trabalhava, acumulava dinheiro, abria empresas, expandia negócios pelo Brasil e exterior. Não gastava em roupas, nem ostentação. Usava sempre o mesmo sapato e o sapateiro já cansou de fazer meia sola. Contava centavos e empregava muita gente: menos negros e polacos. 

Os ricos, da elite como ele o adulavam. Era um sujeito desprezível, porém poderoso. Dinheiro chama dinheiro. Casou com moça de família também rica, mas não dispensava a companhia de funcionárias após 22 horas quando fechava o mercado. Sua ostentação era uma Sidra das mais baratas que ele mesmo botava gelar para a ocasião.  Seus pecados o padre perdoava na missa de domingo, já que eram primos, vieram da mesma cidade, foram criados na infância juntos. Famílias italianas eram grandes e a parentagem era longa.

Era uma quarta-feira de sol quente. Almoçou  o que comia todos os dias: massa com molho de galinha feita na panela, polenta, radicci com bastante vinagre da colônia e pão. Não queria bacon frito porque o preço do porco estava muito caro. Tudo feito em casa. Um bicherote de vinho de garrafão da colônia que foi de seus pais. Não perdeu tempo em descansar. Foi trabalhar, porque alguém podia estar roubando ou fazendo corpo mole. Por isso não empregava negros ou polacos. 

Seguiu sua rotina e faltando poucos metros para entrar em seu negócio e verificar se tudo estava em ordem, algo ocorreu. . Sentiu uma forte dor no peito, formigamento do braço, perdeu forças e caiu na beira da calçada. Uma luz muito forte turvou sua visão e alguém o amparou para não bater a cabeça no meio-fio. 

Pensou: Che cazzo è? Non può essere. Dio è nero.

Sim  Deus era negro”. Negro com a cara do gari que diariamente varria a rua onde ele passava desprezando o tal sujeito.

Mas como pode ser? Deus negro com a cara de lixeiro? Não pode ser! Há algo errado Porco Dio.

Esta foi sua última visão: Morreu na sarjeta amparado por um Deus Negro. Amém, que sua triste alma seja levada para o céu, porque lá embaixo, acho que não vão querer.