sexta-feira, 23 de julho de 2021

Anjo de Olhos Verdes

 Anjo de Olhos Verdes



Seguidamente eu ia até a Catedral Metropolitana São Francisco de Paula, em Pelotas, para rezar e apreciar a arquitetura e a arte, a beleza de suas formas, de suas esculturas, vitrais e afrescos. Uma obra linda iniciada em 1813, portanto há 208 anos.


Estudei e me formei na Universidade Católica de Pelotas, no sul do Rio Grande do Sul, lugar frio, úmido e chuvoso, quase uma Londres. Ficava mais parecida com a capital inglesa quando baixava o nevoeiro, denso como um fog. Algumas ruas escuras dava o ar nebuloso e amedrontador como se fosse Whitechapel, onde Jack o Estripador, o mais famoso serial killer da história e literatura deixou sua tenebrosa marca.


Certo tempo trabalhei na Rádio Pelotense, a primeira emissora do Rio Grande do Sul e terceira do Brasil, que ficava próximo a catedral e em alguns momentos de folga caminhava até a igreja para apreciar a beleza e rezar, também. Era uma caminhada de 300 metros, agradável em dias de sol, porém difíceis no inverno devido a baixas temperaturas, chuvas e ruas alagadas.


Não me cansava de ver  as linhas arquitetônicas, a abóbada, as colunas, o altar, as capelas e seguidamente, no mesmo horário por volta das 10 horas da manhã, percebia a presença de uma senhora, muito devota. Religiosamente estava lá, sempre no mesmo lugar. 


Era uma dama que aparentava uns 70 anos, porém com certo vigor em sua aparência e muito bem cuidada. Estatura média, talvez 1,60, cabelos encaracolados em tons de castanho escuro. Vestia sempre roupas finas. Dava para perceber que seus trajes não eram da Pompéia e sim de magazines de luxo, possivelmente até mesmo de fora. Vestidos bem cortados lhe caiam bem, casacos feitos sob medida, possivelmente confeccionados pelos melhores costureiros, feitos nos melhores tecidos. Em dias mais frios, não dispensava um xale de caxemira e luvas finas de seda, algodão e lã por dentro.


O terço, parecia uma jóia muito cara. Dourado, aparentemente ouro com pedras verdes e vermelhas. Imagino que seriam rubis e esmeraldas para combinar com os olhos verdes da senhora. Estes olhos fitavam o interior da catedral, enquanto os dedos passavam pelas contas do rosário. Seguidamente seus olhos apreciavam os afrescos do teto pintados pelo artista italiano Aldo Locatelli e Emilio Sessa, contratados pelo bispo Antonio Zattera nos anos 50  para eternizar sua arte no sagrado templo. Seus olhos brilhavam ao ver os anjos e os vitrôs  que homenageiam as famílias envolvidas com doações para a construção da Catedral, obras dos artistas italianos trazidos pelo bispo, além de ladrilhos hidráulicos e o piso de madeira originários de 200 anos atrás.


De muitas idas e vindas, muitas vezes a vi dentro da catedral. Algumas vezes, por educação,  a cumprimentei e ela apenas fazia  um movimento com a cabeça consentindo o bom dia. 


Em uma quinta-feira, de inverno, frio, mas com um sol lindo que inundava o interior da catedral com sua luz, tornava os vitrôs mais visíveis, mais lindos e embelezavam a imagem retratada. A luz do sol ultrapassava os vitrôs e refletia a imagem no chão e para quem olhasse diretamente os vidros não tinha como não admirar tamanha beleza. A dama do rosário de ouro, como sempre estava em seu lugar, na segunda fila próximo ao altar. Ela já havia percorrido as naves laterais, tinha feito sua oração e como  sempre estava contemplando as pinturas no teto. Vestia um sobretudo de lã branco, com um cinto da mesma cor, uma echarpe de lã igualmente também branco, com um monograma bordado na ponta em verde. Algo sofisticado. Calçava botas pretas com salto e forração interna de lã. Na mão uma bolsa feita em couro com pesponto dourado. Ali guardava uma pequena Bíblia e seu rosário. Ela levantou, foi ao altar onde havia uma pia, molhou a ponta dos dedos da mão direita e fez o sinal do sinal da cruz. Estava pronta para sair e quem sabe voltar no dia seguinte.



Para minha surpresa, sentou-se ao meu lado e puxou conversa:

  • Reparei que você vem sempre aqui na Catedral. Você aprecia esta igreja?

  • Sim. Acho um belo exemplo de arquitetura, tem história, tem beleza, tem arte e paz de espírito. Aqui agradeço e peço. Renovo minha fé, minha esperança para seguir meu caminho - respondi.

  • Você sabe um pouco da história desta Igreja?

  • Pouca coisa. Apenas sei que tem quase 200 anos e que é uma verdadeira obra de arte.

  • Isto é porque os anjos estão aqui!  Comentou que o artista contratado Aldo  Locatelli era muito talentoso e dedicou-se muito. Retratou muitos rostos de pessoas da alta sociedade que ajudaram financeiramente com vultosas doações para finalizar a catedral e contratar os artistas. Era uma forma de retribuição. Porém as más línguas dizem que Locatelli pintava os anjos mais bonitos com o rosto das moças e damas que haviam sido suas amantes. 

  • Deve ser fofoca mesmo! Comentei. Mas sempre a vejo aqui. Porque a senhora vem praticamente todos os dias e fica apreciando os afrescos. Também gosta de arte?

  • Gosto de arte, vivi esses tempos e sempre me traz ótimas lembranças, com carinho de um tempo que não volta mais. Mas que ficou eternizado na obra deste fabuloso artista. Vejo todos os vitrais, ando por todo o espaço, e não canso de olhar para o teto, onde estão os afrescos e o que mais admiro são os anjos.

  • A senhora admira uma pintura em especial, algum anjo retratado?

  • Sim, veja já em cima, à direita. Na ponta do meu dedo. Viu? Pois é, aquele anjo é o mais belo, certamente pintado com mais ardor, fé, paixão  e amor. Sempre acreditei nisso e nele. Aquele anjo sou eu. Preste atenção. Veja meu rosto imaginando 40 anos ou mais antes. Não sou eu?

Observei, olhei com atenção e consenti. 

  • Sim, certamente é a senhora.

  • Obrigado meu rapaz. Continue sua oração que volto amanhã, disse ela sorrindo com seu olhar angelical de esmeralda. Levantou-se, guardou o rosário na bolsa e seguiu para a porta de saída. Ajoelhou, fez o sinal da cruz e seguiu caminhando. Curioso também saí para ver onde ia. Só vi que embarcou em um Landau preto cuja porta foi aberta pelo chofer,  esperou ela entrar, se acomodar, fechou a porta do carro, fez a volta, tomou seu lugar de motorista e saiu. O carro desapareceu pelas ruas estreitas e molhadas e uma leve névoa dissipante.

Segui frequentando a Catedral, mas nunca mais vi a bela dama de olhos verdes e cara de anjo. Será que ela realmente existiu ou foram meus pensamentos? Ou quem sabe recordações da linda cigana Esmeralda, personagem do livro O Corcunda de Notre Dame, escrita por Victor Hugo em 1831?

A única certeza é seu retrato delicadamente pintado no teto da Catedral. O único anjo de olhos verdes.


sexta-feira, 16 de julho de 2021

Porta Aberta

 Porta Aberta



Há uns 40 anos, num inverno de renguear cusco, peguei o Unesul e rumei para Porto Alegre. Tinha alguns dias de férias do escritório de contabilidade do Ruy Antoni onde eu trabalhava em Erechim. Era metido, destemido e viajava sozinho com 16 anos em diante. Não tinha medo de assombração, nem de trovoada e muitos menos de noite chuvosa com relâmpago. Embarquei às dez e  meia noite no ônibus branco com a tradicional faixa escrita Unesul sobre as cores azul e vermelho, certamente para agradar gremistas e colorados. Naquela época não existia banheiro nos ônibus e o pessoal além de fazer lanche que levavam de casa ainda fumavam dentro do ônibus. Isto no século passado em 1981.


E saiu o Mercedes com apenas um motorista. Seguiu para Getúlio Vargas, Passo Fundo, Soledade, Lageado, Canoas e finalmente Porto Alegre. Lá pelas 6h30min acordo com o ônibus descendo a rampa da rodoviária na capital gaúcha, luzes acesas, alguns passageiros já em pé pegando a bagagem de mão. Sempre tem os apressados. E na descida da rampa o ônibus deu uma freada brusca, devido ao congestionamento de outros ônibus na manobra nos locais de embarque e desembarque. Quando deu a brecada eu estava sentado e senti o baque. Os que estavam em pé se desequilibraram e uma mulher tipo perua com frasqueira na mão, falando alto e toda rebocada de rouge carmim voou lá para frente do ônibus se esparramando no corredor. Foi um alvoroço. Corre daqui, corre dali para acudir a madame que não havia  atendido o pedido de ficar sentada até que o ônibus estivesse parado. Como se faz nos aviões. Com o ônibus estacionado, todos descem, pegam bagagens de mão e seguem para os maleiros na parte inferior para pegar as malas, sacolas, caixas e encomendas. Eu sempre viajo com pouca coisa, Uma mochila apenas.


Sai da rodoviária, atravessei a passarela e peguei o ônibus que me levaria na casa de um amigo onde eu ficaria alguns dias. Quando sai do terminal e fui para o largo da calçada que dá acesso a travessia senti meus ossos congelarem. Vento frio pior que o minuano e vinha a umidade do Guaíba que fica margeando a avenida logo abaixo. E eu nem trouxe um pala de lã.


Subi no Carris e rumei para a casa do colega. Lá chegando aperto o interfone lá pelas 7h da manhã, sonhando com uma xícara de café preto e um pão com manteiga. Nada de atender. Insisti algumas vezes. Nada. Afinal, há 40 anos não existia celular, telefone era coisa de gente rica que financiava uma linha. A gente ia na casa dos outros em avisar e chegava querendo pouco.


Não esquentei, Voltei para o Carris e fui até a Praça 15, no centro histórico de Porto Alegre, ali perto do Mercado Público. Ali só dá malandro que vive na volta do mercado. Dei uma volta na praça, fui até perto da Rádio Guaíba e não aguentei o frio. Voltei para o mercado, atravessei a praça da Prefeitura, onde tem um bela fonte de água, que foi restaurada agora a Fonte Talavera de La Reina, um presente da colônia espanhola ao município em 1935. Cruzei a rua e fui ao Mercado Municipal, onde antes da reforma, era cheio de botecos de fama duvidosa. 


Eu vestia um casaco de pelúcia que a minha avó havia feito. Quentinho, mas feio. Eu mais parecia um cobertor de lá, já que foi feito de um cobertor que havia lá em casa. Foi só cortar e costurar.


Passo na frente de uma das portas em busca de uma boa xícara de café preto, sem açúcar para espantar aquele frio e ouço alguém gritar: Tchê Loco! Eiii...Benhur de Erechim! - gritou forte o caboclo dentro do bar. Parei, olhei e reconheci um antigo colega que havíamos estudado de 5ª a 8ª séries no Colégio Estadual Polivalente.


Parei, entrei no bar e cumprimentei-o . Quanto tempo, o que anda fazendo aqui? - perguntou-me. Peguei alguns dias de férias e vim dar uma volteada aqui pela capital.

E você o que anda inventando? questionei. Me disse que estava trabalhando como servente de pedreiro e estudando para ser “brigadiano”. No Rio Grande do Sul a Polícia Militar se chama Brigada Militar. Naquela época não precisava estudar muito. Era só o primeiro grau.


Pedi um café e o meu amigo estava com um Rabo de Galo, que é uma mistura de cachaça com vermute. Os mais exibidos pedem em copo alto com gelo e limão. Mas no botecos do Mercado era num “martelinho” ou num “mercedinho”. Numa conversa de meia hora já foram dois rabos de galo e comeu um croquete de validade duvidosa.


Ele tinha de ir para a obra, mas combinamos voltar ao mesmo local no final da tarde para papear mais um pouco. ele saiu eu terminei meu café e fui caminhar pelo centro de Porto Alegre, que é bonito, porém durante anos ficou abandonado e judiado. Para passar o dia peguei um ônibus até a Restinga, para visitar a cidade. Chegamos no ponto final onde todos descem, esperam meia hora e a linha volta ao centro. O motorista chegou para mim e perguntou - Você não é daqui né? Respondi que não, era de Erechim e peguei o ônibus para conhecer a cidade um pouco. Então você não desce do ônibus, fica aqui, espera meia hora que vamos te levar de volta. Se descer é perigoso. Atendi a sugestão do motorista. Eu era destemido porque não conhecia os riscos. Botei os fones de meu walkman com fita cassete e fiquei ouvindo James Taylor até que ele deu a partida e retornamos ao centro da capital gaúcha.


Ao final da tarde voltei ao Mercado Público, no mesmo boteco catinguento que marquei com meu colega. Lá estava ele, conforme o combinado. Vi de longe que daria perda total. Já estava com um liso grande de Porta Aberta, uma mistura vinho com coca-cola, já pela metade


Senta aqui, vamos beber porque está frio. Sentei, eu ia pedir um chocolate quente ou café quente, mas o garçom, gordo com um pano no ombro já me trouxe aquele copo cheio de marcas de dedos. Acho que nunca lavaram e transbordando. 

Bebe vai te esquentar as orelhas, me recomendou meu colega. Beberiquei meio com nojo do copo e do conteúdo.

Fica tranquilo, isto é Porto Aberta, como as portas do mercado, que nunca fecham, como as portas do coração de mãe, como as portas das mulher amada. Aconselhou o colega, já num tom poético e falando alto. Bebemos dois cada um e eu querendo me livrar da situação, afinal estava esfriando e eu nem tinha onde dormir, tinha de voltar na casa do meu amigo para bater e ver se tinha alguém em casa e pedir pouso.


Cada vez que meu copo estava na metade ele fazia sinal para o meliante do garçom trazer mais dois. Agora nós vamos mudar de bar, dobrando aqui tem um boteco do uruguaio que tem música, um castelhano canta bem desde bolero, tango e até Nelson Gonçalves.

Aí eu vi que eu estava perdido num mato sem cachorro. O frio e a chuva fina caindo lá pelas seis da tarde. E o tempo passando e papo de gambá correndo solto.


Chegamos no boteco do castelhano e lá tinha um sujeito num canto sentado numa cadeira de palha coberta com um pelego para proteger o traseiro do cantor. Um violão de 7 cordas e uma gaita de oito baixos. O cantor e violeiro estava dedilhando algumas notas, e escalas, bebericando um conhaque Domecq. Logo chega um baixinho que larga uma sacola ho Zaffari no chão e empunha a gaitinha e faz algumas escalas. De uns 10 minutos e chega um argentino com cara de índio, cabelos pretos escorridos com um bombo leguero nas costas.

Imaginei. é hoje que durmo no mercado ou morro de frio aqui nestas paragens.


Começaram abusando. O gaiteiro puxou Mercedita, que não tem como ficar brabo. tem que aproveitar. Depois veio Orelhano, Romance na Tafona, Tropa de Osso, De Ja Hoje, Gardel, Por Una Cabeza. E dá-lhe Porta Aberta.


Lá pelas dez da noite já não aguentava mais e para fechar a noite meu colega levanta faz um brinde aos músicos e pede uma do Vicente Celestino - “Porta Aberta” que prontamente foi executada com maestria.


Antes de sair ele pede mais dois Porta Aberta pra levar. Saímos porta afora ele pegaria o ônibus e eu voltaria para casa do meu amigo para pedir um pouco. Mas que nada! Hoje você vai lá para casa. Determinou o convite assim fomos. Uma hora e meia de ônibus que nem lembro o bairro, chegamos, descemos do ônibus mais uns 15 minutos de caminhada por ruas estreitas, poeirentas e escuras.


Chegamos. A Porta Aberta para os amigos sempre. Disse com um sorriso e gesticulando para que eu entrasse. Casa simples, e me acomodei no sofá. Ele disse que o banheiro ficava logo adiante e que eu não reparasse porque não tinha portas, ainda deu para comprar.  dormi tranquilo e no dia seguinte tomei meu rumo despacito. Ao descer do ônibus ali perto da Praça 15, nem olhei para o mercado e fui para os lados do Piratini. Vai que a porta esteja aberta de novo….