Anjo de Olhos Verdes
Seguidamente eu ia até a Catedral Metropolitana São Francisco de Paula, em Pelotas, para rezar e apreciar a arquitetura e a arte, a beleza de suas formas, de suas esculturas, vitrais e afrescos. Uma obra linda iniciada em 1813, portanto há 208 anos.
Estudei e me formei na Universidade Católica de Pelotas, no sul do Rio Grande do Sul, lugar frio, úmido e chuvoso, quase uma Londres. Ficava mais parecida com a capital inglesa quando baixava o nevoeiro, denso como um fog. Algumas ruas escuras dava o ar nebuloso e amedrontador como se fosse Whitechapel, onde Jack o Estripador, o mais famoso serial killer da história e literatura deixou sua tenebrosa marca.
Certo tempo trabalhei na Rádio Pelotense, a primeira emissora do Rio Grande do Sul e terceira do Brasil, que ficava próximo a catedral e em alguns momentos de folga caminhava até a igreja para apreciar a beleza e rezar, também. Era uma caminhada de 300 metros, agradável em dias de sol, porém difíceis no inverno devido a baixas temperaturas, chuvas e ruas alagadas.
Não me cansava de ver as linhas arquitetônicas, a abóbada, as colunas, o altar, as capelas e seguidamente, no mesmo horário por volta das 10 horas da manhã, percebia a presença de uma senhora, muito devota. Religiosamente estava lá, sempre no mesmo lugar.
Era uma dama que aparentava uns 70 anos, porém com certo vigor em sua aparência e muito bem cuidada. Estatura média, talvez 1,60, cabelos encaracolados em tons de castanho escuro. Vestia sempre roupas finas. Dava para perceber que seus trajes não eram da Pompéia e sim de magazines de luxo, possivelmente até mesmo de fora. Vestidos bem cortados lhe caiam bem, casacos feitos sob medida, possivelmente confeccionados pelos melhores costureiros, feitos nos melhores tecidos. Em dias mais frios, não dispensava um xale de caxemira e luvas finas de seda, algodão e lã por dentro.
O terço, parecia uma jóia muito cara. Dourado, aparentemente ouro com pedras verdes e vermelhas. Imagino que seriam rubis e esmeraldas para combinar com os olhos verdes da senhora. Estes olhos fitavam o interior da catedral, enquanto os dedos passavam pelas contas do rosário. Seguidamente seus olhos apreciavam os afrescos do teto pintados pelo artista italiano Aldo Locatelli e Emilio Sessa, contratados pelo bispo Antonio Zattera nos anos 50 para eternizar sua arte no sagrado templo. Seus olhos brilhavam ao ver os anjos e os vitrôs que homenageiam as famílias envolvidas com doações para a construção da Catedral, obras dos artistas italianos trazidos pelo bispo, além de ladrilhos hidráulicos e o piso de madeira originários de 200 anos atrás.
De muitas idas e vindas, muitas vezes a vi dentro da catedral. Algumas vezes, por educação, a cumprimentei e ela apenas fazia um movimento com a cabeça consentindo o bom dia.
Em uma quinta-feira, de inverno, frio, mas com um sol lindo que inundava o interior da catedral com sua luz, tornava os vitrôs mais visíveis, mais lindos e embelezavam a imagem retratada. A luz do sol ultrapassava os vitrôs e refletia a imagem no chão e para quem olhasse diretamente os vidros não tinha como não admirar tamanha beleza. A dama do rosário de ouro, como sempre estava em seu lugar, na segunda fila próximo ao altar. Ela já havia percorrido as naves laterais, tinha feito sua oração e como sempre estava contemplando as pinturas no teto. Vestia um sobretudo de lã branco, com um cinto da mesma cor, uma echarpe de lã igualmente também branco, com um monograma bordado na ponta em verde. Algo sofisticado. Calçava botas pretas com salto e forração interna de lã. Na mão uma bolsa feita em couro com pesponto dourado. Ali guardava uma pequena Bíblia e seu rosário. Ela levantou, foi ao altar onde havia uma pia, molhou a ponta dos dedos da mão direita e fez o sinal do sinal da cruz. Estava pronta para sair e quem sabe voltar no dia seguinte.
Para minha surpresa, sentou-se ao meu lado e puxou conversa:
Reparei que você vem sempre aqui na Catedral. Você aprecia esta igreja?
Sim. Acho um belo exemplo de arquitetura, tem história, tem beleza, tem arte e paz de espírito. Aqui agradeço e peço. Renovo minha fé, minha esperança para seguir meu caminho - respondi.
Você sabe um pouco da história desta Igreja?
Pouca coisa. Apenas sei que tem quase 200 anos e que é uma verdadeira obra de arte.
Isto é porque os anjos estão aqui! Comentou que o artista contratado Aldo Locatelli era muito talentoso e dedicou-se muito. Retratou muitos rostos de pessoas da alta sociedade que ajudaram financeiramente com vultosas doações para finalizar a catedral e contratar os artistas. Era uma forma de retribuição. Porém as más línguas dizem que Locatelli pintava os anjos mais bonitos com o rosto das moças e damas que haviam sido suas amantes.
Deve ser fofoca mesmo! Comentei. Mas sempre a vejo aqui. Porque a senhora vem praticamente todos os dias e fica apreciando os afrescos. Também gosta de arte?
Gosto de arte, vivi esses tempos e sempre me traz ótimas lembranças, com carinho de um tempo que não volta mais. Mas que ficou eternizado na obra deste fabuloso artista. Vejo todos os vitrais, ando por todo o espaço, e não canso de olhar para o teto, onde estão os afrescos e o que mais admiro são os anjos.
A senhora admira uma pintura em especial, algum anjo retratado?
Sim, veja já em cima, à direita. Na ponta do meu dedo. Viu? Pois é, aquele anjo é o mais belo, certamente pintado com mais ardor, fé, paixão e amor. Sempre acreditei nisso e nele. Aquele anjo sou eu. Preste atenção. Veja meu rosto imaginando 40 anos ou mais antes. Não sou eu?
Observei, olhei com atenção e consenti.
Sim, certamente é a senhora.
Obrigado meu rapaz. Continue sua oração que volto amanhã, disse ela sorrindo com seu olhar angelical de esmeralda. Levantou-se, guardou o rosário na bolsa e seguiu para a porta de saída. Ajoelhou, fez o sinal da cruz e seguiu caminhando. Curioso também saí para ver onde ia. Só vi que embarcou em um Landau preto cuja porta foi aberta pelo chofer, esperou ela entrar, se acomodar, fechou a porta do carro, fez a volta, tomou seu lugar de motorista e saiu. O carro desapareceu pelas ruas estreitas e molhadas e uma leve névoa dissipante.
Segui frequentando a Catedral, mas nunca mais vi a bela dama de olhos verdes e cara de anjo. Será que ela realmente existiu ou foram meus pensamentos? Ou quem sabe recordações da linda cigana Esmeralda, personagem do livro O Corcunda de Notre Dame, escrita por Victor Hugo em 1831?
A única certeza é seu retrato delicadamente pintado no teto da Catedral. O único anjo de olhos verdes.