Porta Aberta
Há uns 40 anos, num inverno de renguear cusco, peguei o Unesul e rumei para Porto Alegre. Tinha alguns dias de férias do escritório de contabilidade do Ruy Antoni onde eu trabalhava em Erechim. Era metido, destemido e viajava sozinho com 16 anos em diante. Não tinha medo de assombração, nem de trovoada e muitos menos de noite chuvosa com relâmpago. Embarquei às dez e meia noite no ônibus branco com a tradicional faixa escrita Unesul sobre as cores azul e vermelho, certamente para agradar gremistas e colorados. Naquela época não existia banheiro nos ônibus e o pessoal além de fazer lanche que levavam de casa ainda fumavam dentro do ônibus. Isto no século passado em 1981.
E saiu o Mercedes com apenas um motorista. Seguiu para Getúlio Vargas, Passo Fundo, Soledade, Lageado, Canoas e finalmente Porto Alegre. Lá pelas 6h30min acordo com o ônibus descendo a rampa da rodoviária na capital gaúcha, luzes acesas, alguns passageiros já em pé pegando a bagagem de mão. Sempre tem os apressados. E na descida da rampa o ônibus deu uma freada brusca, devido ao congestionamento de outros ônibus na manobra nos locais de embarque e desembarque. Quando deu a brecada eu estava sentado e senti o baque. Os que estavam em pé se desequilibraram e uma mulher tipo perua com frasqueira na mão, falando alto e toda rebocada de rouge carmim voou lá para frente do ônibus se esparramando no corredor. Foi um alvoroço. Corre daqui, corre dali para acudir a madame que não havia atendido o pedido de ficar sentada até que o ônibus estivesse parado. Como se faz nos aviões. Com o ônibus estacionado, todos descem, pegam bagagens de mão e seguem para os maleiros na parte inferior para pegar as malas, sacolas, caixas e encomendas. Eu sempre viajo com pouca coisa, Uma mochila apenas.
Sai da rodoviária, atravessei a passarela e peguei o ônibus que me levaria na casa de um amigo onde eu ficaria alguns dias. Quando sai do terminal e fui para o largo da calçada que dá acesso a travessia senti meus ossos congelarem. Vento frio pior que o minuano e vinha a umidade do Guaíba que fica margeando a avenida logo abaixo. E eu nem trouxe um pala de lã.
Subi no Carris e rumei para a casa do colega. Lá chegando aperto o interfone lá pelas 7h da manhã, sonhando com uma xícara de café preto e um pão com manteiga. Nada de atender. Insisti algumas vezes. Nada. Afinal, há 40 anos não existia celular, telefone era coisa de gente rica que financiava uma linha. A gente ia na casa dos outros em avisar e chegava querendo pouco.
Não esquentei, Voltei para o Carris e fui até a Praça 15, no centro histórico de Porto Alegre, ali perto do Mercado Público. Ali só dá malandro que vive na volta do mercado. Dei uma volta na praça, fui até perto da Rádio Guaíba e não aguentei o frio. Voltei para o mercado, atravessei a praça da Prefeitura, onde tem um bela fonte de água, que foi restaurada agora a Fonte Talavera de La Reina, um presente da colônia espanhola ao município em 1935. Cruzei a rua e fui ao Mercado Municipal, onde antes da reforma, era cheio de botecos de fama duvidosa.
Eu vestia um casaco de pelúcia que a minha avó havia feito. Quentinho, mas feio. Eu mais parecia um cobertor de lá, já que foi feito de um cobertor que havia lá em casa. Foi só cortar e costurar.
Passo na frente de uma das portas em busca de uma boa xícara de café preto, sem açúcar para espantar aquele frio e ouço alguém gritar: Tchê Loco! Eiii...Benhur de Erechim! - gritou forte o caboclo dentro do bar. Parei, olhei e reconheci um antigo colega que havíamos estudado de 5ª a 8ª séries no Colégio Estadual Polivalente.
Parei, entrei no bar e cumprimentei-o . Quanto tempo, o que anda fazendo aqui? - perguntou-me. Peguei alguns dias de férias e vim dar uma volteada aqui pela capital.
E você o que anda inventando? questionei. Me disse que estava trabalhando como servente de pedreiro e estudando para ser “brigadiano”. No Rio Grande do Sul a Polícia Militar se chama Brigada Militar. Naquela época não precisava estudar muito. Era só o primeiro grau.
Pedi um café e o meu amigo estava com um Rabo de Galo, que é uma mistura de cachaça com vermute. Os mais exibidos pedem em copo alto com gelo e limão. Mas no botecos do Mercado era num “martelinho” ou num “mercedinho”. Numa conversa de meia hora já foram dois rabos de galo e comeu um croquete de validade duvidosa.
Ele tinha de ir para a obra, mas combinamos voltar ao mesmo local no final da tarde para papear mais um pouco. ele saiu eu terminei meu café e fui caminhar pelo centro de Porto Alegre, que é bonito, porém durante anos ficou abandonado e judiado. Para passar o dia peguei um ônibus até a Restinga, para visitar a cidade. Chegamos no ponto final onde todos descem, esperam meia hora e a linha volta ao centro. O motorista chegou para mim e perguntou - Você não é daqui né? Respondi que não, era de Erechim e peguei o ônibus para conhecer a cidade um pouco. Então você não desce do ônibus, fica aqui, espera meia hora que vamos te levar de volta. Se descer é perigoso. Atendi a sugestão do motorista. Eu era destemido porque não conhecia os riscos. Botei os fones de meu walkman com fita cassete e fiquei ouvindo James Taylor até que ele deu a partida e retornamos ao centro da capital gaúcha.
Ao final da tarde voltei ao Mercado Público, no mesmo boteco catinguento que marquei com meu colega. Lá estava ele, conforme o combinado. Vi de longe que daria perda total. Já estava com um liso grande de Porta Aberta, uma mistura vinho com coca-cola, já pela metade
Senta aqui, vamos beber porque está frio. Sentei, eu ia pedir um chocolate quente ou café quente, mas o garçom, gordo com um pano no ombro já me trouxe aquele copo cheio de marcas de dedos. Acho que nunca lavaram e transbordando.
Bebe vai te esquentar as orelhas, me recomendou meu colega. Beberiquei meio com nojo do copo e do conteúdo.
Fica tranquilo, isto é Porto Aberta, como as portas do mercado, que nunca fecham, como as portas do coração de mãe, como as portas das mulher amada. Aconselhou o colega, já num tom poético e falando alto. Bebemos dois cada um e eu querendo me livrar da situação, afinal estava esfriando e eu nem tinha onde dormir, tinha de voltar na casa do meu amigo para bater e ver se tinha alguém em casa e pedir pouso.
Cada vez que meu copo estava na metade ele fazia sinal para o meliante do garçom trazer mais dois. Agora nós vamos mudar de bar, dobrando aqui tem um boteco do uruguaio que tem música, um castelhano canta bem desde bolero, tango e até Nelson Gonçalves.
Aí eu vi que eu estava perdido num mato sem cachorro. O frio e a chuva fina caindo lá pelas seis da tarde. E o tempo passando e papo de gambá correndo solto.
Chegamos no boteco do castelhano e lá tinha um sujeito num canto sentado numa cadeira de palha coberta com um pelego para proteger o traseiro do cantor. Um violão de 7 cordas e uma gaita de oito baixos. O cantor e violeiro estava dedilhando algumas notas, e escalas, bebericando um conhaque Domecq. Logo chega um baixinho que larga uma sacola ho Zaffari no chão e empunha a gaitinha e faz algumas escalas. De uns 10 minutos e chega um argentino com cara de índio, cabelos pretos escorridos com um bombo leguero nas costas.
Imaginei. é hoje que durmo no mercado ou morro de frio aqui nestas paragens.
Começaram abusando. O gaiteiro puxou Mercedita, que não tem como ficar brabo. tem que aproveitar. Depois veio Orelhano, Romance na Tafona, Tropa de Osso, De Ja Hoje, Gardel, Por Una Cabeza. E dá-lhe Porta Aberta.
Lá pelas dez da noite já não aguentava mais e para fechar a noite meu colega levanta faz um brinde aos músicos e pede uma do Vicente Celestino - “Porta Aberta” que prontamente foi executada com maestria.
Antes de sair ele pede mais dois Porta Aberta pra levar. Saímos porta afora ele pegaria o ônibus e eu voltaria para casa do meu amigo para pedir um pouco. Mas que nada! Hoje você vai lá para casa. Determinou o convite assim fomos. Uma hora e meia de ônibus que nem lembro o bairro, chegamos, descemos do ônibus mais uns 15 minutos de caminhada por ruas estreitas, poeirentas e escuras.
Chegamos. A Porta Aberta para os amigos sempre. Disse com um sorriso e gesticulando para que eu entrasse. Casa simples, e me acomodei no sofá. Ele disse que o banheiro ficava logo adiante e que eu não reparasse porque não tinha portas, ainda deu para comprar. dormi tranquilo e no dia seguinte tomei meu rumo despacito. Ao descer do ônibus ali perto da Praça 15, nem olhei para o mercado e fui para os lados do Piratini. Vai que a porta esteja aberta de novo….
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