sábado, 30 de outubro de 2021

Tesouros de João Maria

 Tesouros de João  Maria



Cada vez que passo em Irani, no meio-oeste catarinense em direção a Erechim, paro no Cemitério do Contestado onde há sepulturas, e um pequeno museu. Do outro lado da Transbrasiliana (BR-153) um monumento à luta e aos mortos da Guerra do Contestado. Uma enorme cruz segurada por duas mãos.


Me recordo da infância quando ouvia histórias de gente que sumiu no mundo em busca do tesouro do Contestado. E na semana passada li matéria da colega Ângela Bastos na edição digital do portal NSC, sobre o Assalto ao Trem Pagador, ocorrido em 1909 pelo grupo liderado por Zeca Vaccariano, um empreiteiro que tinha de pagar os trabalhadores na construção da ferrovia. Como levou calote dos donos da ferrovia, resolveu recuperar seu prejuízo confiscando valores do trem. Fato ocorrido no meio oeste catarinense alguns anos antes do conflito que contestava as linhas demarcatórias de Santa Catarina e Paraná. (1912-1916).


Há casos contados pela minha avó Elvira de que alguns agricultores arando a terra encontraram baús recheados de ouro. Muitos acreditavam na maldição do monge João Maria, pois profanaram segredos do líder messiânico e sumiram no mundo sem deixar rastros.


Isto reavivou minhas lembranças dos causos contados em casa, ou que ouvia da conversa dos adultos. O mistério dos monges João  Maria permeia a cabeça de muita gente e principalmente há pouco mais de 100 anos quando houve o conflito e as disputas a sangue por todo o território do meio-oeste é de acreditar que algumas moedas de ouro e prata ficaram enterradas.


Muita gente veio do Rio Grande do Sul se aventurar em terras catarinenses nos anos 30 em diante, quando começaram as colonizações, criação de cidades, desmatamentos para fazer lavouras e o início da agroindústria com os cooperados. Era terra barata e de boa qualidade para plantio. A terra era arada com uma junta de bois. E quanto a parelha empacava sem força pois o arado havia engatado em alguma pedra ou toco de árvore restante do desmatamento. Alguns tinham uma surpresa. Poderia ser um baú, armamentos enterrados ou algo mais valioso.


E na faixa que vai de Canoinhas-Porto União descendo pelo Meio Oeste até chegar em Marcelino Ramos no Rio Grande do Sul, foi palco de batalhas. Volta e meia achavam garruchas, munições, espingardas, espadas, facas, usadas nas peleias e também ossos de pessoas que morreram e ali ficaram com suas roupas dentes de ouro, algumas moedas de prata nos bolsos. 


Volta e meia eu ouvia falar de algum conhecido, vizinho ou parente de alguém que em busca da riqueza fácil  se aventurou em busca dos tesouros, que acreditavam existir. Um deles era um próspero comerciante de pedras preciosas e semi-preciosas. Se paramentou com detector de metais, mochila, alforje, barraca, enfim tudo o que precisava para andar pelos campos onde haviam ocorrido as batalhas e achar algo valioso e assim “enricar”. Até uma égua nova comprou com todo o encilhamento necessário.


Se despediu da família. Deixou uns trocados para a mulher e recomendou que ela não deixasse faltar nada para os cinco filhos. Além de  um maço de Cruzeiros entregou a ela um saquinho de feltro com pedras que valiam muito e deixou dito: - Se algo acontecer de eu não voltar, vá vendendo estas pedras. Fale com o ourives que ele sabe o que fazer. Despediu-se de todos, montou na égua e seguiu a trotezinho em direção a Santa Catarina. Na época, a travessia era de  balsa para cruzar o rio Uruguai abaixo do Estreito ou cruzar a ponte férrea em Marcelino Ramos. Seguiu pelo traçado em direção a Irani, onde acamparia e começaria sua caça aos tesouros do Monge, ou de algum comerciantes, fazendeiro que tenha enterrado sua riqueza para fugir dos saques das batalhas. Ou quem sabe ainda haveria um baú com moedas de prata confiscadas do trem. Ou uma “boca rica” com alguns dentes de ouro. Era fácil. Só sacudir esqueletos que os dentes de ouro se soltavam. 


Passaram anos sem que voltasse com sua riqueza, seu tesouro. Enquanto isso a mulher foi vendendo as pedras, criando os filhos e tocando a vida, de forma modesta. Sempre com a esperança de que um dia o marido voltasse com algum tesouro, ou que só voltasse para conhecer os netos.


Volta e meia alguém dava notícias de que ela havia sido visto em alguma localidade e o peito dela se enchia de esperanças. Outros informavam que estaria enterrado no cemitério, ou que se perdeu em uma caverna.


Em um final de tarde de tempestade, o sol sumiu por volta das 16 horas. Era chuva que Deus mandava. Ela fez uma cruz de sal em cima da mesa para Santa Bárbara acabar com a tempestade. Neste momento, ouviu a porta da cozinha ranger e ser arranhada por fora. Era um som distante como se fosse uma mistura de apito de trem e uivo de lobos. Parecia que alguém estava tentando entrar, mas não com batidas e sim com arranhões em uma causa desesperada, como se estivesse dentro de um caixão enterrado vivo e tentando sair ou pedindo socorro. Mesmo com temor, ela abriu a porta para ver do que se tratava. Ninguém. Apenas um vento gélido acariciou seu rosto, espalhou seu cabelo e percorreu seu corpo como se fossem carícias. No momento ela sentiu que algo era definitivo. Ali ela recebeu o mandado do Céu de que ele nunca mais retornaria.


Eu havia planejado uma incursão pelo Contestado. Já que em breve vou me aposentar e poderia empreender uma cruzada em busca de tesouros. Seria bom, enriquecer, colocar uns dentes de ouro, pelo menos na frente para brilhar quando sorrir, comprar uma propriedade, encher de ovelhas e ficar mateando 


Mas, lembrando este causo que a vó contava, acho melhor nem parar mais ali no Cemitério do Contestado. Vai que o João Maria desconfia que estou de olho nas patacas enterradas. Bom feriado de Finados a todos.




terça-feira, 26 de outubro de 2021

O melhor lugar do mundo

 O melhor lugar do mundo


Imaginem uma cidade com efervescência cultural de música, literatura, teatro, pintura, esculturas, grandes mestres de renome mundial como Juarez Machado e Fritz Alt, apresentações artísticas de várias formas e performances e o melhor de tudo gratuitamente. 


Não existe? Pois lhe informo que você está mal informado (a). Este lugar é Joinville, como sempre repito o melhor luar do mundo, que me acolheu há praticamente 30 anos.

Esta semana tive o privilégio de entrevistar gente talentosa na música, teatro, museologia, literatura e sobre oportunidades para manifestações artísticas.


Foi um prazer rever o amigo violonista, compositor e cantor Edson Copetti, do Alma de Galpão com sua potente voz e acordes no violão, o homem  é um show solito. Para quem gosta de música rio-grandense ou a denominada Nativa dos festivais. Pois mora em Joinville há 27 anos, desde que veio de São Luiz Gonzaga. Mais um gaúcho missioneiro que deu com os contados em terras joinvilenses. E está aí com seu talento.


Os joinvilenses vão lembrar do Bêra. Sim o Mestre Bêra. Fizemos um programa especial com o grupo de samba que leva o nome do Mestre Bêra. Gente talentosa como o Marcelo do Pandeiro, Gaúchão e seu violão de sete cordas e o Zito Pereira, professor de música e que teve a honra de conviver e trabalhar com o maestro Tibor Reisner. Conviveram e tocaram com Mestre Bêra, um músico que ainda precisa de uma justa homenagem de Joinville a ele. Quando Luiz Henrique era prefeito, oportunizou a produção de um CD e denominou a rua do Bêra, um trecho do Guanabara saindo da ponte Mauro Moura até a rótula. 


Não é só para adultos, também conversei com a teatróloga Angela Finardi e a compositora e violonista Prika Lourenço, que montaram um musical infantil sobre a Princesa Margarida, encenada neste domingo no Museu de Arte de Joinville às 10h e às 14h. Tudo isso grátis.


Neste final de semana não se divertiu quem não quis. Havia roteiro guiado pelas obras de Frtiz Alt, duas feiras de arte e artesanato com música, comida, trabalhos esmerados feitos a mão. E vem mais por aí. Os editais de apoio a cultura vão destinar milhões para quem quiser produzir livros, cinema, shows e várias outras produções artísticas e culturais. O artista tem sua oportunidade de financiamento. É só ler os editais e se inscrever com projetos bons que deem retorno ao povo.


Como diria Milton Nascimento, o artista tem que ir onde o povo está.


Qual cidade catarinense tem tudo isso gratuitamente à sua população?


Por isso que eu repito, o melhor lugar do mundo é aqui e vamos aproveitar o domingo pois opções de lazer acessível existem muitas. Confesso que não gosto de praia. Prefiro um passeio pelas ruas, pelas feiras e pelos shows de gente nossa. Experimente. É mais prazeroso do que ficar horas em congestionamentos na BR. Não esqueça de sintonizar na Rádio Joinville Cultural 105,1 FM.


Bom domingo para todos nós.




9 anos

 9 anos


Eu acordei determinado a escrever sobre a Nina, mas ela pode esperar. Simpática, querida, agradável, adorável, cabelos pretos brilhantes e sedosos e um olhar encantador. E ciumenta, também, daquelas que perseguem o sujeito até no banheiro para ver se está com segredos ao celular.


Mas vamos falar dos 9 anos da nossa Rádio Joinville Cultural. Poderia ser mais uma entre tantas de nossa cidade, daquelas que tocam música de mau gosto e informam a hora certa. Nada disso. Desde que surgiu, veio com um propósito específico. Difundir cultura, educação, arte em todas suas formas e tornou-se o canal aberto para jovens e experientes artistas.


Na Rádio Joinville Cultural os compositores e cantores locais podem ouvir suas músicas, sempre tiveram as portas abertas para divulgação e para apresentar seu talento. Assim é na pintura, na escultura, no teatro, na literatura e todas as formas de arte. Bem como na educação e boas práticas comunitárias seja de entidades sociais, empresas e de segmentos da comunidade.


Joinville é privilegiada em ter uma estrutura pública de ensino regular e mais ainda em ter o complexo da Casa da Cultura, Ballet do Teatro Bolshoi, sediar o maior Festival de Dança do mundo que começa nesta semana e mais recentemente um dos mais prestigiados festivais de piano o Pianístico.


Se você quer conhecer mais, obter mais cultura, mais conhecimento, ouvir sobre a história de nossa cidade, prestigiar seus valores culturais passe a ouvir a Rádio Joinville Cultural, na frequência 105,1 FM. É uma oportunidade de você qualificar o seu gosto e prestigiar gente nossa.


A emissora pública chega aos 9 anos e com renovação. Estreia nesta segunda-feira (4) uma nova “cara” com novas vozes, novas vinhetas trazendo mais jovialidade e dinamismo, sem deixar de ser sóbria. Novos estúdios de produção e novos programas com conteúdo local e regional.


Sem puxa-saquismo, que não é meu feitio, isto está sendo possível devido o apoio dos secretários de Cultura e Turismo Guilherme Gassenferth;  Comunicação Thiago Boeing, e principalmente do prefeito Adriano Silva e da vice-prefeita Rejane Gambim que sabem da importância em fortalecer a comunicação e cultura locais. Quando receberam as sugestões de melhorias apoiaram prontamente


Aproveite o bom gosto sintonize a 105,1 FM de Joinville e torne seus dias bem melhores. De manhã em minha companhia. E quanto a Nina? Curiosos...Esperem que outra hora eu conto.




terça-feira, 12 de outubro de 2021

Piá do Djanho

 Piá do Djanho


Não tive o privilégio de ter filhas. Mas Deus escreve certo por linhas tortas. Tive dois garotos e é melhor assim. Se fosse menina, imagina os cuidados. Ela seria solteira a vida toda, pois ninguém estaria à altura. No mínimo um ano de namoro aos domingos, no sofá de casa acompanhado da família. Mas o causo é sobre dois amigos e colegas.

Nesta semana nasceu a primeira filha de um colega de trabalho e ao parabenizá-lo lhe contei o acontecido com o Alberto, que bem casado com uma esposa muito inteligente, trabalhadora e bonita tiveram duas filhas igualmente estudiosas, mais bonitas que laranja de amostra e inteligentes. Notas boas, iam bem nos estudos e tinham um belo futuro.

Vânia  já com seus 17 anos terminou o ensino médio e foi para Curitiba estudar na UFPR- Universidade Federal do Paraná e todo final de semana vinha para casa. Pegava o Catarinense em pouco mais de uma hora estava na rodoviária onde o Alberto ia buscá-la. Vinha com a mochila cheia de roupas da semana para serem lavadas, mais seu notebook e livros que se dedicava aos estudos. Também saia com as amigas em alguma balada joinvilense, mas não era muito afeita a noite.


De uns tempos em diante começou a vir para casa dos pais a cada 15 dias, foi espaçando, depois um mês e por fim vinha a cada meio ano. Só lembrava o pai na data de pagar a faculdade e mandar dinheiro do aluguel e alimentação. 


Alberto comentava com a esposa Neusa, bela com seus 40 e poucos anos, loira natural cabelo curto, corpo bem torneado, olhos azuis e muito delicada em tratar os assuntos. Acho que ele nem a merecia. Como dizem popularmente era muito areia para o caminhãozinho dele. Mas a mãe de Vânia, sempre botando panos quentes. Alberto, deixa disso a menina está estudando, deve estar em provas – argumentava. Mas ultimamente nem me pede mais dinheiro, justificou a preocupação. Esquece este assunto e te prepara que domingo tem visita. Que visita? Perguntou surpreso. Neusa respondeu que a filha iria trazer um “amigo” para conhecerem. Ele fechou a cara, ficou emburrado e sentiu-se traído. Tinham armado uma conspiração.


Chegou o dito domingo, que por coincidência, apesar de alguns acreditarem que não existe coincidência, era também Dia de Nossa Senhora Aparecia, padroeira do Brasil e dia das Crianças. Naquele domingo de sol 12 de outubro, Alberto pulou da cama cedo, já preparou a churrasqueira, deixou o carvão ali do lado, espetos, facas, geladeira abastecida com cerveja de marca boa, gasosinha, e seu uísque que não podia faltar. Não economizou para agradar a visita. Só picanha de angus, costela que ele era especialista em fazer, linguicinha artesanal temperada, pão e fez a mistura de alho com manteiga. Não comprava pronto. Gostava de fazer.


Neusa começou a correr bem cedo, limpando tudo, organizando a mesa, fez sobremesa. Até parecia que iriam receber o Bispo


Lá pelas 10h ouvem um barulho estranho na frente da casa. Se olharam e pensaram: “Vamos ver no que vai dar”. Era uma camionete pampa enferrujada com o sol alto tocando Paixão Proibida de Chico Rey e Paraná. Saltou um chapeludo do lado do motorista e do lado da carona nada mais nada menos que a filha Vânia, com a mochilinha, seu note e nada de livros.


Lá da rua o tal gritou. Bom dias. Nóis viemo num tufo! Já imo entra. Eu truxe umas incomenda que o pai mandou. Se apinchou  na carroceria da pampa pegou uma caixa com mandioca, batatas, pepinos, tomates, vidros de compotas de doce de abóbora, de casca de laranja, um saco de bergamota, duas couves-folha. Descarregou também um cooler, deste que levamos para a praia com gelo para a cerveja e refrigerante.


O pai mandou aqui uma paleta de “ovéia” e metade de um “javaporco” que ele cria. Ponhemo tudo ai drento. Vamo subi. Me ajuda aí, ordenou ao pai da moça, o Alberto. Meio a contragosto da folga do rapaz ajudou levar as “incomenda”. Neusa tentando ser alegre sorridente abraçou a filha cumprimentou o amigo e entraram. Guardadas as encomendas a Vânia finalmente apresentou o vivente. Pai, mãe este é o... Ela ia falar e ele cortou. Sou o Jerômo, seu criado. Apertaram as mãos e nem deu tempo de Alberto falar alguma coisa. O tal Jerômo se atirou no sofá, pegou o controle da televisão e ligou no programa esportivo. Queria ver a preleção do Coritiba. Alberto espichou um beiço que demonstrava seu descontentamento. Vânia o pegou pelo braço e sussurrou. Não fala nada. Aguenta, vai lá fora.


Alberto atendeu o conselho da mulher foi lá na piscina, passou a rede para recolher algumas folhas, ligou o aspirador para dar uma limpada e sentou numa cadeira de alumínio daqueles conjuntos de moveis que usam em piscinas. Ao levantar para ir pegar mais uma dose de uísque enredou o pé na cadeira e caiu derrubou a mesinha e fez um barulhão danado. Alberto deitado na calçada à beira da piscina só ouviu o grito que vinha de dentro de casa:


-SUSPEDE A PINGA DO VÉIO, KKKKKKKK. Gritou dando gargalhas o tal de Jerômo. Era um farsante mais de um ano com a filha fazendo sei lá o que em Curitiba, no primeiro dia lhe toma o controle da TV, é torcedor do Coritiba e ainda o reprime dentro de casa quando ele toma um uisquinho. Levantou meio dolorido e foi furioso para a sala pronto para pegar o pescoço do sujeito.


Entrou na sala a filha ao lado do Jerômo toda faceira, a esposa tomando um mate e ai ouviu mais uma:

- Sente aqui meu sogro véio. Sei que o senhor é do Atrético, Mas o Coritiba é bem mior. Vânia chegue pra lá e deixa o véio sentar aqui do meu lado. Agora vamos ver a Missa de Aparecida, sou devoto da Padroeira do Brasil.

Alberto deixou a fúria passar, sentou ao lado do tal Jerômo, viu a missa transmitida pela TV Aparecida até o final e só ficou pensando

- É um piá do Djanho mesmo. Só falta este tongo pousar aqui em casa!


Que Nossa Senhora Aparecida nos Proteja.



sábado, 9 de outubro de 2021

Nosso Império era a rua

Nosso Império era a rua



Ainda tive o privilégio de ter uma infância excelente, quando tínhamos amigos, vizinhos, brincadeiras saudáveis e tudo isso na rua, ou nos pátios de alguma casa, o que a geração de hoje nem imagina o que é subir em pé de bergamota, laranja, caqui, goiabeira.


A rotina em tempos de escola era mais ou menos igual. De manhã acordava cedo, mesmo com frio e geada tinha de ir para a escola a pé. Quando chovia muito o morro era “incaminhável” e “insubível” e daí tinha de andar um pouco mais e ir pela rua de calçamento. Nada demais, uma volta de uns 300 metros a mais de caminhada dando a volta na quadra.


Meio dia terminada a aula era hora de correr para almoçar, mas já havíamos comido a “merenda” que era um pratão de comida feita na cozinha da escola pelas zeladoras. Tudo gente conhecida ali da vizinhança mesmo.


Tarde e noite eram os períodos de maior prazer. Primeira condição era fazer o “tema de casa “, já no início da tarde para ficar livre o resto do dia. Mas antes de ir para a rua com a piazada eu tinha um ritual. Gostava de assistir o Batman, Tarzan e o National Kid e desenhos como Homem-Aranha, João Grandão, Corrida Maluca, Pica-Pau, Coyote, Patolino,  Pernalonga, Tom & Jerry, Flintstones, Jetsons, Manda-Chuva e tantos outros.


Em dias de sol, uma volta de Monareta pela quadra e depois se reunir com a quadrilha de vizinhos para as tradicionais brincadeiras. Nunca fui de jogar futebol. Não tinha físico, nem habilidade para isso, mas brincadeiras de carrinho, cowboy, subir em árvores, andar longas distâncias de bicicleta pela cidade e até interior era muito aprazíveis, jogar bolita (bolinhas de gude), trocar figurinhas de álbuns e as que sobravam bater figurinhas, cabo de guerra e várias outras atividades ao ar livre.


Nas noites de verão a turma aumentava daí vinham também os que estudavam de tarde. Após seis horas da tarde estavam livres e as brincadeiras eram de se esconder, pegador, garotas saltavam elástico e faziam umas coreografias estranhas e pulavam na calçada com quadrados feitos de giz. Mestre Mandou, Passa Anel, telefone sem fio. Assim íamos até perto de meia noite


Também era divertido caçar vagalumes que colocávamos dentro de um vidro para observar ele acender a lanterninha. Algumas malvadas escreviam nos muros com o vagalume, Crueldade. Na “lanterna”  do vagalume tem um pó fosforescente e esfregando o traseiro do inseto dá para escrever. Isto é ciência.


Mas um dos meus melhores prazeres de infância, além de comer era o banho de chuva. Aquilo era muito bom. Andar só de calção na chuva, brincar na lama, fazer represa na valeta, soltar barquinhos de papel. Imaginar a calha do telhado como se fosse uma imensa cachoeira. Claro que às vezes ficava com dor de garganta, alguma febre, mas na maioria das vezes nem sentia nada, afinal tínhamos anticorpos, pois vivíamos na rua. A minha mãe sempre repetia que eu era vacinado com a poeira da rua, pois pouco ficava dentro de casa. Afinal a diversão era lá fora. Dentro de casa era chato. A maior diversão era a TV mas o horário de assistir era regulado. Restava inventar brincadeiras, subir e árvores, percorrer a vizinhança.


Neste 12 de outubro, dia da Padroeira do Brasil Nossa Senhora Aparecida, também se comemora o dia das crianças. E rezamos para que a padroeira olhe pelo futuro dessa criançada que está crescendo sem nunca ter descido de uma prisão de apartamento ou de terem país chatos que proíbem a criança de tudo. Nada podem fazer. Tem um colega de trabalho que vive com medinho pois a mãe repetia sempre:

- Fulano não vai aqui. Fulano não faz isso. Fulano fica dentro de casa. Fulano não vai sujar a roupinha. Legítimo piá de prédio. Mas pelo menos eu aproveitei minha infância e meus filhos também, pois a rua era nosso império, sem mimimi nem traumas.



domingo, 3 de outubro de 2021

Nina

 Nina


Nunca mais me procure. Risque meu novo seu idiota! Este foi o desabafo de uma garota por volta de 20 anos, loira, estatura mediana, vestindo jeans, camiseta baby look branca com uma jaqueta de fio sintético de cor dourado brilhante. Na cabeça uma boina de feltro de cor azul petróleo. Colocou a mochila nas costas, destas que as garotas usam. Para reforçar seu descontentamento, ao chegar ao portão da casa chutou com força  para abrir. Não deu certo. O portão era de correr. Só conseguiu quebrar o salto do sapato. – FDP até isso me dá prejuízo. A esta altura a vizinhança fofoqueira estava espiando pelas janelas. Um gordo aposentado saiu com a pança à mostra saber do que se tratava. Fez menção de se intrometer e puxar conversa. Vai pra dentro véio fofoqueiro que isto não é de sua conta. Rapidamente o vizinho entrou na casa dele e foi direto para a cozinha onde comentou com a esposa. A peleia foi feia, o piá deve ter pisado na bola.


Incomodada com a situação, salto quebrado não tinha como descer a rua, um aclive acentuado em direção a avenida principal para pegar o ônibus. Ela tirou os sapatos, enfiou tudo na mochilinha, teve cuidado de recolher o salto para mandar consertar no sapateiro perto de onde trabalha, numa loja do centro de Joinville. Ele iria deixar novo, afinal ainda está pagando as prestações. Ela ainda ouviu o namorado, ou ex-namorado, ou ficante, nos tempos de hoje nunca se sabe qual tipo de relacionamento está ocorrendo, chegar perto do portão e fechar novamente já que ela deixou escancarado. Ele insensível, como se nada tivesse acontecido fazendo cara de paisagem abanou aos vizinhos deu bom dia como se estivesse tudo normal, mas todos sabiam que algo tinha ocorrido na casa da esquina que as vezes tem movimentação sempre de moças diferentes. Esta última até que durou uns 4 meses.


Ele ainda arriscou um quer que eu te leve?  Deveria ter ficado de boca fechada. Leve você para o quinto dos infernos seu FDP, gritou a garota do meio da rua descendo a ladeira com dificuldades e descalça. Com cara de quem caiu do caminhão de mudanças, meio desenxabido entrou em casa e ficou o resto do dia quieto. Fechou janelas, e os vizinhos só ouviam ao longe um som de vinil lamentoso. Nem adianta explicar os efeitos de John Lee Hooker, BB King, Ray Charles, Etta James, Aretha Franklin entre outros. No silêncio da madrugada às vezes a vizinhança ouvia um som de cristal quebrado e um uivo longo. Lá se foi outro copo cambaleante ao chão, partindo em mil pedaços como seu coração.


Na manhã seguinte, a vizinhança preocupada olhava a casa de esquina, deram a volta para ver, como quem não quer nada, se viam algo ou vestígio. Apenas ela, a Nina, que desceu do sofá da sala, a porta da frente que dá para a garagem ficou aberta a noite toda, deitou na brita em frente a casa. O dia amanhecendo, o sol surgindo Nina com seu reluzente pelo negro aquecia o corpo e deixava sua pelagem ainda mais brilhante.  Foi testemunha de todo o sofrimento de seu dono, mas ela havia se apegado aquela mocinha simpática.

Nina cansou de lamber o focinho do dono para acalentá-lo, ou quem sabe acordá-lo. Ela imaginava o que havia ocorrido, mas sabia, também, que não foi a primeira e nem seria a última vez. Sabia que mais tarde ele acordaria com o focinho amassado.


Nina apenas lamentava que aquela garota  agradável de mochila foi embora. Ela sempre trazia um biscoitinho de polvilho que comprava na padaria ali perto. Nina, chegava perto do portão, cheirava, olhava para ver se ela voltava, mas nada. Assim passou o dia. Afinal tinha se apegado à garota do biscoito de polvilho. O que houve com o Don Juan? É conhecido hoje como gênio. Não pelos seus feitos, mas por viver dentro da garrafa, resultado de um amor desfeito. Só restou a Nina para acalentá-lo. Bem que ele poderia agradar comprando biscoitinhos de polvilho.