A Fogueira Santa e a cobra dedo-duro
Nos anos 60 e 70 era comum grupos missionários, geralmente charlatões, fazerem pregações nas praças públicas, inevitavelmente no centro das cidades, reunindo um bom público, pois na época pouco se tinha para fazer. Não era comum ter televisão, que estava engatinhando na casa dos brasileiros e nas cidades menores do interior chegou mais tarde.
A diversão era dar um passeio pelo centro da cidade nas noites quentes, olhar as vitrines. Eu corria para a Plasticolândia, pois na vitrine haviam os melhores e mais lindos brinquedos da Estrela e sempre montavam um trem elétrico, denominado Ferrorama ou um autorama que ficava ligado, para encher os olhos da criançada. Era coisa de rico. Não podia comprar, mas olhar era de graça. Vitrine de encher os olhos, grande, loja bem iluminada e cheia de brinquedos.
No final dos anos 60 teve uma semana de pregação na Praça da Bandeira, em Erechim, ao lado do chafariz, para o lado do “Castelinho” (antiga Comissão de Terras e Colonização). Lá pelas sete horas de uma noite quente passamos pela praça e percebemos a movimentação. Já havia um círculo grande de pessoas em volta de um grupo de pregadores com vestimentas espalhafatosas e que “oravam” com fervor. E ia juntando gente. Eu estava interessado na melancia que geralmente a gente comprava para refrescar o calor noturno. Após a melancia uma pitada de sal para não fazer mal. Na volta para casa havia caminhões com barracas e cargas de melancia na praça Daltro Filho.
No meio da multidão um pregador gritava com toda força que podia. Entoava hinos, balançavam bandeiras e levantava as mãos para o céu e o povaréu, ali. Alguns incrédulos, outros já de joelhos, outros acompanhavam a reza de olhos fechados, mãos espalmadas ao alto. E também tinha um piazote metido, que só estava observando e de olho em tudo à sua volta.
Aqui tem um homem que bebe todo dia e não dá nada para a família! Bradou o pregador. Neste momento começou a movimentação, uns olhando para os outros, mulheres cutucando o marido com o cotovelo nas costelas, filhos querendo falar alguma coisa e os pais mandando calar a boca e prestar atenção.
Em vez de beber cachaça, jogo do bicho ou gastar com aquelas moças ali atrás da Prefeitura, deveriam ajudar nossa pregação. É hora do ofertório. E as obreiras passavam um saquinho de pano branco com uma cruz finamente bordada.
E o piazito metido não parava quieto. - Pai, pai, tem dinheiro aí? Questionava o patriarca, com cara de poucos amigos. Não tenho nada guri. O que tenho é para a melancia, respondeu. Mas o piá metido enfiou a mão no bolso do pai, pegou 10 cruzeiros e jogou dentro da sacolinha. Aquilo ferveu o sangue do pai que ficou com vontade de dar um aplauso na orelha do filho, mas se conteve em meio a multidão.
E segue a pregação.
Irmãos, chegou a hora de queimar os pecados na Fogueira Santa. Quem não atirar seus pecados aqui vai queimar com a bola de fogo que virá do céu. Bateu o pavor no pessoal.
Joguem no centro deste círculo um papel com seus pecados, as revistas de mulher pelada, as fotonovelas que empobrecem e aprisionam a alma, os jornais que trazem notícias tristes. Vamos queimar todo o pecado para a vida seguir. Ordenou o pregador que fez sinal para uma assistente. Ela sim cometeu um crime.
Entrou no meio do grupo com um turíbulo ardente. Lá dentro uma chama que ele jurava ser da fogueira ardente do Monte Sinai. Rasgou um pedaço da famosa Penthouse americana, uma revista sueca e o sacrilégio um quadrinho do Zéfiro. Principiaram o fogo. Alguém correu, trouxe uma Playboy e jogou na labareda, que se alastrava com jornais, revistas, panfletos e alguns livros que julgavam comunistas.
Logo em seguida foi a vez do cigarro. Os fumantes atiravam seus maços de cigarro no fogo e o piazote levou a mão no bolso da camisa de tergal do cunhado, arrancou o maço de cigarro Hudson com ponteira, de embalagem verde e “pinchou no fogo”. Agora o cunhado estaria curado.
Seguiu a pregação combatendo o vício da bebida. Todos deveriam esvaziar suas garrafas em casa e não frequentar os botecos, pois ali deixavam o moral, a saúde e o dinheiro que faltava em casa. Quando o piá ia falar algo, só disse - AAiiiiiiii. Era a mãe que lhe aplicou um beliscão com vontade.
E o piazote metido arrancou o Correio do Povo que o pai dele segurava entre o corpo e o braço. Correu e incendiou as notícias que o pai nem lera, pois só o faria quando chegasse em casa após exaustivo dia de trabalho. Aquele dia o pai nem pode ouvir o Correspondente Renner na Rádio Guaíba e queira se inteirar das novidades.
E segue a pregação e a queimação dos pecados na dita Fogueira Santa. Papelório queimando. Surge uma senhora de idade avançada e joga os biquínis da neta, que julgava serem imorais e coisa do demônio. E o piá gritou - Isso mesmo vó. Eu sei que ela usa para pecar! Todos olharam e o metido que ficou com os olhos fixos na fogueira que ardia os pecados e transformava em fumaça. Através da fuligem que subia, simbolizando os pecados queimados, se via a antiga Catedral São José, que foi demolida para dar lugar a um prédio ridículo que mais parece um ginásio de esportes.
Quase no final da pregação, todo paramentado o dito pastor chama um assistente com uma caixa de madeira medindo 50 cm x 50 cm com furos em cima e aparentemente uma abertura na lateral.
Vocês já ouviram falar dos 7 pecados capitais e hoje queimamos estes pecados na Fogueira Santa. Mas tem mais um pecado: o da Luxúria. O Irmão Aderbal vai revelar as mulheres e homens que namoram mais de uma pessoa ao mesmo tempo.
Aí a platéia começou a murmurar, ver para os lados, alguns fuzilavam vizinhas com olhares de atirador de elite, outras comentavam à boca pequena, se cutucavam, apontavam.
Agora o Irmão Aderbal vai soltar uma poderosa e venenosa cobra sábia que trouxe da escuridão da floresta africana e com conhecimentos dos faraós do Egito. Ela vai percorrer o círculo de fogo, dará três voltas e vai parar em frente a maior pecadora. Depois seguirá para os pecadores que são muito namoradeiros também.
Aí o piá deu um pulo, correu em direção a uma vizinha, que morava próximo a casa deles, mas que namorava um padre famoso de uma cidade próxima, tocador de gaita, cantor e que todos gostavam, Mas Toda semana vinha tomar um café e às vezes ficava até o outro dia. A vizinhança fofoqueira sabia de tudo.
Naquela altura todos se viraram para o guri.
Tia, tia, vamos embora a cobra vai te pegar! Gritou a plenos pulmões pegando pela mão da “Tia” para lhe salvar da cobra inquisidora. Ali acabou a pregação da fogueira que queimava os pecados. Todos caíram na gargalhada e para alívio de centenas só uma foi crucificada. A tia disfarçava. - Para com isso guri, o que vão pensar de mim?
Com isso houve dispersão geral e rápida, vai que mais alguém aponte o dedo-duro de cobra africana egípcia.Os pregadores trataram de recolher as cinzas pecaminosas.
Naquela noite foram embora sem a melancia, pois o metido havia dado o dinheiro para os charlatões.
Aconselho que se avistarem um círculo de gente numa praça pública e alguém vociferando alguma pregação, faz de conta que não viu, passa para o outro lado da calçada e segue teu rumo. Vai que a cobra fofoqueira africana ainda esteja por aí apontando em sua direção.