sábado, 27 de janeiro de 2024

Retiro espiritual no Carnaval

 


Lá pelos anos 80 eu estudava na Escola Estadual Normal José Bonifácio, bem no centro de Erechim. Sim era "normalista", mas não imaginem besteiragem. Tinha o segundo grau de noite. Durante o dia a escola formava normalistas, daquelas que usavam saia plissada, camisa branca e gravatinha. De noite era para quem trabalhava de dia e chegava meio cansado. As aulas iam até 23h15min. Hoje sim é moleza.


Mas um colega, já mais adulto, casado com família, do tipo certinho, cabelo arrumadinho e roupas engomadas,  chegou e disse para a mulher dele que durante o Carnaval iria fazer um retiro com o pessoal da igreja e pediu que ela ficasse em casa com os filhos para evitar largar a casa em tempos de feriadão.

 

- A bandidagem anda solta. Levaram o botijão de gás do compadre e as lenhas da dona Amélia. Coitada, viúva, nem sei como fará para cozinhar. Veja se ela precisa de ajutório. Depois falo com o padre para ver se dá para a comunidade ajudar.


Pegou uma bolsa da agremiação atlética da firma, juntou algumas roupas e fez questão de mostrar a Bíblia que conservava há anos e que foi presente de sua querida avó, que Deus a tenha, pois o criou como filho. A mãe dele havia se desencabeçado com um artista do circo que passou pela cidade e partiu no mundo, deixando o Nestorzinho  aos cuidados da avó. Moravam no bairro Progresso, mais para os lados do Florestinha. 


Na sexta-feira, véspera do feriadão, saiu com a bolsa e seus pertences que não podiam faltar. A mulher até preparou uma vianda para ele levar.


- Olha meu querido, leve esta vianda, pode ser que lá não tenha tudo o que você goste. Disse-lhe alcançando a vianda de alumínio com um sortido de carnes já prontas para o consumo.


- Nem precisava "mãezinha", lá tem muito o que comer. Agradeceu, subiu na bicicleta e seguiu até o ponto de partida do ônibus, que iria para o interior de Quatro Irmãos, num sítio onde seria o retiro.


Passados três dias, sem notícias, pois não existia telefones com facilidade para ligar, celulares não tinham sido inventados ainda.


Na segunda-feira a televisão local, durante o Jornal do Almoço, mostrava as festividades de Carnaval pela região, principalmente clubes e balneários próximos. 


- Mãaaaeeeeeee! Olha o pai na TV. Gritou o filho mais velho.


- Onde seu piá mentiroso, teu pai foi rezar lá em Quatro Irmãos, Paulo Bento, sei lá onde. Está com o Padre e o pessoal da Liturgia, piá papudo. Tá vendo coisa?


- Corre aqui! Gritou o garoto de pouco mais de 12 anos. A mãe veio e se deparou com a cena da reportagem que devido as poucas imagens repetiam o mesmo quadro várias vezes. 


Eis que aparece Nestorzinho, o retirante espiritual  todo fantasiado, dentro do laguinho que se formava na famosa Cascata Nazari, no rio Ligeirinho, interior de Erechim.  O tema daquele ano era Noite Havaiana. O sujeito se atirava na água, pulava abraçado com duas belas jovens em trajes minúsculos e bebia no gargalo uma Serramalte de 600 ml fabricada em Getúlio Vargas, Afamada pela qualidade.


E para piorar a situação o noticiário repetia as mesmas imagens em todas as edições. Manhã, tarde e noite, ficaram repetindo o Carnaval de Erechim e região até na quarta-feira, quando voltou o retirante para casa.


Na quarta-feira de cinzas, Nestorzinho chegou na porta da casa  com o semblante de quem se penitenciou, rezou por todos e ainda trouxe de presente um rosário para cada um, uma cuca enorme de farofa, uma peça de queijo curado, duas voltas de salame e uma linguiça. Tudo de boa procedência feito pela colonada. 


Notou que algo estava errado quando subiu dois degraus da escadinha que dava acesso à área externa na frente da casa, e assim para a porta principal da sala. Nem o Toco latiu, muito menos rosnou, nem abanou o rabo.


Olhou uma mala amarrada com um pedaço de soga e um bilhete que dizia:


Entendo que fostes rezar pelos pecados do mundo.

Deves seguir seu caminho de peregrinação e retiro espiritual.

A Tv mostrou todo seu esforço na Cascata Nazari 

com as duas belas irmãzinhas que você ajudou a salvar suas almas pecaminosas.

Aquela água benta na garrafa de Serramalte devia estar ungida para tirar o demônio de seu couro, pois vi seus olhos virados com cor de sangue e a baba raivosa que saia de sua boca.

Procure se salvar também. 


- A culpa é do padre, a culpa é do padre, a culpa é do padre. Começou a gritar, tão logo chegou ao final do bilhete. Ele sempre prega - Adeus à carne. Vem a quaresma. Foi uma despedida - tentou argumentar.


Foi o último Carnaval Havaiano de Nestorzinho. Equipe de Liturgia soube e convidaram ele a não mais participar. As duas alminhas que ele salvou voltaram para as casas das tias onde trabalhavam perto do aeroporto. 


Nestorzinho continua na firma, não assiste mais TV, pois foi sua desgraça. E sempre repete há 40 anos: Esta Globo de bosta! Continua pregando no Carnaval. Mas antes dá uma boa olhada se não tem  ninguém filmando. Ultimamente como todos tem celular e redes sociais, Nestorzinho comprou uma coleção de perucas para disfarçar. Sua preferida é a que imita o cantor Ovelha.


Fica o aviso aos carnavalescos. Está chegando o período de retiro. Comprem suas perucas antes e nada de celular. Mas dêem uma boa olhada no perímetro antes de iniciar a pregação. 


domingo, 21 de janeiro de 2024

A traição imperdoável


Eu o conheço há muitos anos, de cumprimentar, uma conversa às vezes e quando vizinhos há mais de 12 anos, parávamos na calçada para papear. Gostava de ouvir as histórias contadas por ele, sempre repetidas, mas eram seus troféus. Nunca soube o nome completo, mas eu o batizei de Nelson Mentiroso. Andava com sua bengala devido às dificuldades de locomoção por causa de uma queda tempo atrás.

 

Qualquer assunto que surgisse ou puxava conversa ele já sabia de antemão ou já tinha se envolvido. Repetia que tinha uma espalha chumbo e um revólver.

 

- Se entrar na minha casa dou tiro! – Era seu mantra contra a violência e furtadores. Nelson Mentiroso, já com seus 70 anos, andava solitário, triste com o idolamento da aposentadoria e a única filha de um relacionamento antigo nunca o procurava.

 

Notei que estava com olhos vermelhos, pesaroso e desenxabido da vida e se abanando para refrescar do calor que causou uma sensação de quase 60 graus em Joinville nas últimas semanas. O vi encostado no murinho baixo na frente de sua casa, estacionei o carro e fui prosear com o sujeito. Há anos não falava com ele e pensei que tinha morrido.

 

- Buenas vivente. Está vivo ainda? Capim ruim não morre! – brinquei com ele. E sem mostrar os dentes me respondeu:

 

- Boa tarde seo moço. Sumiu e esqueceu dos amigos? Eu quase passei dessa para a melhor, Que Deus me valha e me leve logo. – desabafou Nelson. 

A prosa já entornou e tentei entender o sofrimento. Afinal sempre foi contador de vantagens, metido a brabo apesar deus 1m60 e porte de peso pena.

- O que houve seo Nelson, porque esta tristeza no coração?

- Ela foi embora...me deixou um vazio por dentro, respondeu.

- Mas a Paçoca morreu, fugiu? Me referi a cachorrinha vira-latas que era o xodó do Nelson.

- Não! A minha paçoquinha se foi faz 10 anos. Quem partiu foi Tânia Regina.

- Mas quem é Tânia Regina? Outra cachorrinha?

- Não te faça de bobo, é uma mulher que eu trouxe para cá. Estava muito sozinho. Respondeu com vigor e com certa mágoa no tom de voz. Aí o assunto me interessou e sentei no murinho, querendo saber mais.

- Mas o que houve? questionei.

- Um dia cheguei em casa e estava tudo vazio. Responde com os olhos cheios d`água.

- Entendo quando se perde alguém que se goste a gente sente um vazio interior, na alma, o coração fica magoado e a tristeza nos afeta e adoece. Comentei de forma compreensiva.

- Não foi meu coração que ficou vazio, foi a casa. Ela encostou um caminhão enquanto eu fui no banco lá no centro pagar as contas e se mudou levando todos meus móveis, explicou com a boca espumando de raiva.

 

Senti que a traição foi mais do que o sentimento partido no coração de Nelson. Seu bolso ficou com um furo e a algibeira vazia. Parei, dei um abraço nele e disse que deveria seguir meus compromissos e na despedida eu falei:

- Nelson nada de namoradas e larga essa tampa de caixa de sapatos que está se abanando e compra um ar condicionado. Veinho assim, com este calor pode enfartar.

 

- Mas some daqui e vai tomar no .... Não estou puto porque ela foi embora. Ela levou meu ar condicionado e agora tenho de ficar aqui contando a mesma história para os enjoados e me abanando.

 

Levantei rapidinho e escondi o riso. Fica o conselho aos meus amigos velhinhos. Chumbem o ar condicionado, amarrem com grilhões de aço. Esperem para namorar no inverno, mas nada de comprar lareira portátil.

 

Como o calor está perto de 60 graus neste domingo, bom mesmo é tomar banho nas águas límpidas e geladas do Cubatão ou do Piraí.


sábado, 13 de janeiro de 2024

O meu mundo ficou pequeno

 

 

Após 40 anos de ter saído de meu pago, às vezes me pego lembrando da minha infância e a imensidão que era meus domínios. Não sabia que árvores com frutas se chama pomar e rosas, flores é ajardinamento que tornavam aquele canto do lote bem mais bonito e algumas com perfumes que iam longe.

 

Eram pés de bergamota, laranja, limão, parreira com uvas, jabuticaba, ariticum, ameixa e os três pés de caqui chocolate, o meu preferido, tinha o fuyu sem semente, mas eu achava amarguento e outro café. Era fácil subir, mas também tinha uma vara com uma lata presa na ponta e um arame. Era só encaixar a fruta dentro da lata, torcer que se desprendia e vinha sem machucados. Mas meu maior temor era o tal do Louva-a-Deus. Os mais velhos nos assustavam que era venenoso que várias mortes haviam acontecido pela picada do inseto. Coitado, levou a fama sem culpa. Nunca teve veneno e nunca matou ninguém.

 

Meu território parecia uma sesmaria e com o tempo apequenou e eu também sou menor do que penso, como diz a música Veterano, vencedora da Califórnia da Canção Nativa de Uruguaiana em uma ótima apresentação de Leopoldo Rassier.

 

Estes 40 anos passaram, desde que desgarrei e sai gauderiando, foi  como um trote ligeiro numa cancha reta. Não vi o bagual disparar. Só sei que está perto da linha final e o povaréu abanando chapéu e rebenque e gritando: - Dá-lhe cancha, índio véio!.

 

Muitas vezes nestes páreos o braço fraquejou, mas a coragem me sustentou em cima do lombo. Faça frio, geada, cerro branco ou o calor do verão com uma sanga para se banhar a vida é bela e sempre vai chegar a primavera com seus encantos de cores, flores e pássaros.

 

Enquanto não chega a hora de encontrar a peonada no campo santo vamos nos aprochegando no rancho, no bolicho, na pulperia e convivendo com os amigos, compadres e mentirosos de nossos grupos. Geralmente as mentiras, os causos e vantagens se repetem após a segunda caña.

 

E assim vamos de venta aberta, sem freios campo afora, sem perder tempo, afinal pode ter uma prenda esperando com mate com mel.