Lá pelos anos 80 eu estudava na Escola Estadual Normal José Bonifácio, bem no centro de Erechim. Sim era "normalista", mas não imaginem besteiragem. Tinha o segundo grau de noite. Durante o dia a escola formava normalistas, daquelas que usavam saia plissada, camisa branca e gravatinha. De noite era para quem trabalhava de dia e chegava meio cansado. As aulas iam até 23h15min. Hoje sim é moleza.
Mas um colega, já mais adulto, casado com família, do tipo certinho, cabelo arrumadinho e roupas engomadas, chegou e disse para a mulher dele que durante o Carnaval iria fazer um retiro com o pessoal da igreja e pediu que ela ficasse em casa com os filhos para evitar largar a casa em tempos de feriadão.
- A bandidagem anda solta. Levaram o botijão de gás do compadre e as lenhas da dona Amélia. Coitada, viúva, nem sei como fará para cozinhar. Veja se ela precisa de ajutório. Depois falo com o padre para ver se dá para a comunidade ajudar.
Pegou uma bolsa da agremiação atlética da firma, juntou algumas roupas e fez questão de mostrar a Bíblia que conservava há anos e que foi presente de sua querida avó, que Deus a tenha, pois o criou como filho. A mãe dele havia se desencabeçado com um artista do circo que passou pela cidade e partiu no mundo, deixando o Nestorzinho aos cuidados da avó. Moravam no bairro Progresso, mais para os lados do Florestinha.
Na sexta-feira, véspera do feriadão, saiu com a bolsa e seus pertences que não podiam faltar. A mulher até preparou uma vianda para ele levar.
- Olha meu querido, leve esta vianda, pode ser que lá não tenha tudo o que você goste. Disse-lhe alcançando a vianda de alumínio com um sortido de carnes já prontas para o consumo.
- Nem precisava "mãezinha", lá tem muito o que comer. Agradeceu, subiu na bicicleta e seguiu até o ponto de partida do ônibus, que iria para o interior de Quatro Irmãos, num sítio onde seria o retiro.
Passados três dias, sem notícias, pois não existia telefones com facilidade para ligar, celulares não tinham sido inventados ainda.
Na segunda-feira a televisão local, durante o Jornal do Almoço, mostrava as festividades de Carnaval pela região, principalmente clubes e balneários próximos.
- Mãaaaeeeeeee! Olha o pai na TV. Gritou o filho mais velho.
- Onde seu piá mentiroso, teu pai foi rezar lá em Quatro Irmãos, Paulo Bento, sei lá onde. Está com o Padre e o pessoal da Liturgia, piá papudo. Tá vendo coisa?
- Corre aqui! Gritou o garoto de pouco mais de 12 anos. A mãe veio e se deparou com a cena da reportagem que devido as poucas imagens repetiam o mesmo quadro várias vezes.
Eis que aparece Nestorzinho, o retirante espiritual todo fantasiado, dentro do laguinho que se formava na famosa Cascata Nazari, no rio Ligeirinho, interior de Erechim. O tema daquele ano era Noite Havaiana. O sujeito se atirava na água, pulava abraçado com duas belas jovens em trajes minúsculos e bebia no gargalo uma Serramalte de 600 ml fabricada em Getúlio Vargas, Afamada pela qualidade.
E para piorar a situação o noticiário repetia as mesmas imagens em todas as edições. Manhã, tarde e noite, ficaram repetindo o Carnaval de Erechim e região até na quarta-feira, quando voltou o retirante para casa.
Na quarta-feira de cinzas, Nestorzinho chegou na porta da casa com o semblante de quem se penitenciou, rezou por todos e ainda trouxe de presente um rosário para cada um, uma cuca enorme de farofa, uma peça de queijo curado, duas voltas de salame e uma linguiça. Tudo de boa procedência feito pela colonada.
Notou que algo estava errado quando subiu dois degraus da escadinha que dava acesso à área externa na frente da casa, e assim para a porta principal da sala. Nem o Toco latiu, muito menos rosnou, nem abanou o rabo.
Olhou uma mala amarrada com um pedaço de soga e um bilhete que dizia:
Entendo que fostes rezar pelos pecados do mundo.
Deves seguir seu caminho de peregrinação e retiro espiritual.
A Tv mostrou todo seu esforço na Cascata Nazari
com as duas belas irmãzinhas que você ajudou a salvar suas almas pecaminosas.
Aquela água benta na garrafa de Serramalte devia estar ungida para tirar o demônio de seu couro, pois vi seus olhos virados com cor de sangue e a baba raivosa que saia de sua boca.
Procure se salvar também.
- A culpa é do padre, a culpa é do padre, a culpa é do padre. Começou a gritar, tão logo chegou ao final do bilhete. Ele sempre prega - Adeus à carne. Vem a quaresma. Foi uma despedida - tentou argumentar.
Foi o último Carnaval Havaiano de Nestorzinho. Equipe de Liturgia soube e convidaram ele a não mais participar. As duas alminhas que ele salvou voltaram para as casas das tias onde trabalhavam perto do aeroporto.
Nestorzinho continua na firma, não assiste mais TV, pois foi sua desgraça. E sempre repete há 40 anos: Esta Globo de bosta! Continua pregando no Carnaval. Mas antes dá uma boa olhada se não tem ninguém filmando. Ultimamente como todos tem celular e redes sociais, Nestorzinho comprou uma coleção de perucas para disfarçar. Sua preferida é a que imita o cantor Ovelha.
Fica o aviso aos carnavalescos. Está chegando o período de retiro. Comprem suas perucas antes e nada de celular. Mas dêem uma boa olhada no perímetro antes de iniciar a pregação.