Cuidado com os porquinhos
Certa feita tinha uma matéria para fazer para uma revista de pecuária. Visitaria uma fazenda lá pros lado de Herval, no sul do Rio Grande do Sul. Experimento com búfalos. Ficaria hospedado na fazendo e durante o dia acompanharia a lida. Contaria a história desde a introdução do animal indiano, adaptação na pampa, sua alimentação, manejo e aceitação pela peonada e mercado. Quem não gosta de muzzarela de búfala? No braseiro então é de lamber os beiços.
Cheguei na estância no meio da tarde e o capataz me recebeu com uma cuia de mate e mesa posta para alimentar o vivente. Me indicou um local para deitar o esqueleto, ali mesmo no galpão com a peonada. Era uma cama feita a facão, estrado de bambu, colchão de palha de milho e uma cobertura de pelego para ficar bem quentinha. Do lado da cama, um cepo com um pelego gasto para sentar e matear e prosear.
Me desvencilhei da mochila, peguei um bloco, caneta para anotações, verifiquei se a máquina Yashica FX-D tinha filme e fui começar a prosa com o pessoal entre uma cuia e outra, acompanhado de uma cachacinha e um picadinho de charque para amansar a fome. De longe dava para ver a manada de búfalos, chifre torno, pesadão. Alguns chegam a mais de uma tonelada.
O bicho tem cara feia mas é manso, garantiu o capataz. Proseamos um bom tempo e anotei enquanto o fogo estava recebendo mais lenha para o jantar.
Como sempre, um bom pedaço de carne assada, carreteiro, queijo do Uruguai e pão que a patroa assou no forno de barro pela manhã para receber o moço da cidade. O jantar no campo é cedo, para dormir cedo e acordar de madrugada para render o dia. Antes de dormir uma cantoria para relaxar com um trago de caña que trouxeram lá de Santo Antônio da Patrulha. É um santo calmante. Mas um chá de cidreira não pode faltar ou uma gemada com leite e casca de laranjeira.
Lá pelas 4h30 da madrugada me acordo com a movimentação da peonada. Um já principiou o fogo para o mate e café de chaleira. O leite era tirado na hora para o camargo que nada mais é do que uma caneca esmaltada de café preto forte que se leva até a teta da vaca e tira o leite direto na caneca. Quentinho e cremoso, melhor que qualquer capuccino feito nas melhores cafeterias da Itália. Uns comem pão com salame, outros um bom pedaço de charque, outros carreteiro que sobrou ou as lascas de churrasco da noite anterior. Cortei duas fatias do pão caseiro e atolei quatro colheradas de dulce de leche Conaprole ali do Uruguai e um pedaço generoso de queijo de búfala. Ficou gordinho e delicioso, mal consegui abrir a boca para morder de tão grande que era o lanchinho. Para garantir o dia, preparei mais dois sanduíches igualmente bem preparados com nata, queijo e carne. Cavalgar pela estância me levaria o dia e peão não volta para o almoço. Só vem para casa ao terminar a lida, lá pelas cinco da tarde.
Sentando no cepo, fiquei com minha caneca de café, tentando comer meu pão com doce de leite e queijo e observando a movimentação, anotando e fotografando.
Mais adiante numa baia um peão estava escovando uma égua zaina (pelos pretos e castanho entrelaçados). Escovou o rabo, o lombo, acariciou suas crinas negras e conversava com a égua. Carinho igual se faria numa bela morena. Botou o freio, encilhou, manta, sela, barrigueira, estribos. Apertou bem, puxou as rédeas, deu um tapa no traseiro e elogiou:
Muy hermosa Zélia.
Se achegou perto de mim e disse que o patrão mandou aprontar a Zélia para eu camperear. Agradeci e questionei se o animal era arisco, aporreado. Garantiu que não. Era ensinada e calma. Mas se eu fosse pros lado do Uruguai que eu tivesse cuidado com os porcos. Deu uma risada, pensando no que estava falando. Eu com medo de porcos, me criei vendo chiqueirão. Era Landrace, Large White, Duroc, porco carne, porco banha e outros menos cotados.
Peguei a máquina de fotografia com filme kodak de 36 poses e ISO 400 e mais dois rolos de garantia, atravessei no pescoço e puxei as rédeas da Zélia. Calcei as botas e ia botar as esporas. O peão disse que não precisava, a Zélia conhecia a estância e sabia voltar sozinha. Mas por que Zélia? Me explicou que o patrão deu este nome em homenagem a uma mulher que roubou a poupança dele e de mais gente. Não tinha mais detalhes de onde morava, se era ou não da redondeza.
Montei na Zélia e sai despacito, sem me exibir. Ia dar uma campereada, bombear de longe os búfalos e fotografar. Eu e Zélia andamos pelo campo uns 5 quilômetros e ela empacou. Apeei, fiquei observando um bando de quero-quero e lá mais adiante uma família de mulita, numa sanga que corria coxilha abaixo e formava um banhado um monte de capincho se banhava e rolava no barro num dia de verão, acho que era fevereiro de lua cheia. Estava tudo mais tranquilo que vaca na Índia.
Enquanto isso a Zélia começou a comer grama, beber numa poça d'água. Sem me avisar, Zélia levantou a cabeça rapidamente, orelha em pé, empinou e deu pinote a trote largo.
Pensei: Zélia é Zélia, depenou a guaiaca do patrão e agora me deixa no meio do campo, no mato sem cachorro. O que será que deu na cabeça desse bicho? Será que foi meus 100 quilos? Estava mais pesado que sono de surdo. Ou não queria aparecer na foto? Se assustou com os búfalos, alguma cruzeira no pasto ( Esta cobra assusta até elefante e mordida de cruzeira não tem reza que cure. É só encomendar a alma e levar para o campo santo. Era uma cena mais feia que paraguaio baleado.
Olhei atento e nada de cobra, búfalos lá adiante, mas a polvadeira e os guinchos dava para ouvir. Um bando de porcos selvagens javalis dentuços e destruidores e raivosos vindos do Uruguai corriam em minha direção. Espalharam os búfalos, os capinchos perderam o rumo e nem sabiam para onde correr. A gritaria dos quero-quero dava para ouvir léguas adiante. Vi um capão numa coxilha uns 200 metros. Corri pra lá que nem cavalo de contrabandista e subi num pé de Guatambu. Foi o tempo que deu para me livrar da manada que passou como um terremoto. Dentes afiados igual prateada feita no Uruguai, arrancava lascas da árvore. Não levantou poeira porque era no pasto. Esperei uma meia hora até ter certeza de que os porcos selvagens tinham sumido e que não voltariam para pegar meu couro. Desci da árvore me recompus, avaliei a bombacha, todas pregas em dia e segui a pé de volta à sede da fazenda.
Chegando lá, a Zélia me esperando com a cara de quem roubou a poupança de todos. Senti um risinho sarcástico da zaina. Passei ao lado dele raspando no pelo e virei a cara.
Nem te vi, bodosa, ladrona de poupança, traidora! Cochichei no ouvido da égua. Enquanto isso o capataz veio saber o que houve.
Buenas moço, o que houve que a Zélia que chegou antes?
Dispensei a égua antes que eu queria observar melhor os bichos - despistei, mesmo ele não acreditando na minha versão. Nesta hora a Zélia dá um relincho que mais parecia uma gargalhada.
A história já te julgou Zélia. E vou contar pra peonada que foi sua culpa deles não receberem salário naquela época. Vai rindo que o rabo de tatu vai te lanhar as costelas e a espora vai comer sua pança. Me vinguei! Imagina se depois dos javalis me aparecesse um leão baio. Daí sim a briga ia ser feita.
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