quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

Nem o Diabo queria

 Nem o Diabo queria

 

- Não sou teu pai. Maledetta hora que te deixaram ali na porta. Devia  ter te jogado no bueiro! – berrava o velho com a língua arrastando de bêbado.

- Pai, não fala assim. Tá na hora do remédio – respondia singelamente o filho.

- Porco cane! Porco Dio! – bestemava o marceneiro.

Todo dia o ódio, a raiva saia babando em ofensas ao Zé Carlos. Pacientemente fazia que não ouvia. Nunca perdeu a estribeira de revidar e falar algumas verdades para aquele velho mal educado, odioso, raivoso que vivia bestemando, desdenhando e ofendendo-o.

Poucas vezes fui na casa do Zé Carlos, quando estudávamos juntos no Polivalente, hoje a escola de chama Érico Veríssimo. Moravam num dos morros do São Cristovão, próximo à escola. Quando tínhamos que fazer trabalho em grupo nunca podia ser na casa dele, pois o terror vivia mais em casa com a cara cheia de vinho do que trabalhando em uma marcenaria, Vivia de atestado e o patrão nem fazia questão que fosse bêbado ou de ressaca para evitar que perdesse as mãos ou dedos na serra e assim se encostaria pelo resto da vida.Era comum martelar o dedo para ir para casa

Cabia ao Zé Carlos, franzino com seus 12 anos atravessar a cidade com a bicicleta e buscar um garrafão de vinho tinto lá no Mandelli, no Riccardi ou no Peccin.  Dava uns 6 km de ida e volta. Fui junto algumas vezes com minha Monaretta. Ele pegava uma Barra Forte do irmão mais velho que cursava Engenharia  Mecânica na Universidade de Passo Fundo.  Eram em sete. Apenas ele que não era filho biológico.

- Piá de bosta. Não serve nem para trazer um “garafon”. Me traga o troco” ordenava

Perdemos contato há mais de 40 anos, quando cada um seguiu seu rumo no segundo grau, faculdade e escolhas da vida.

Esta semana conversando com conhecidos pelo face perguntei se lembravam do Zé Carlos. Me informaram que estava ali no São Cristovão ainda e que não usava rede social, mas tinha whats app.

Tentei ver se lembrava de mim. Passei uma mensagem recordando quem eu era. Claro que lembrava, pois amizades que se fazem na adolescência persistem.

Conversamos sobre o Polivante, sobre o rigor do vice-diretor e a simpatia do diretor. Da ordem na escola, da limpeza, da aula integral, do ensino profissionalizante, da merenda que era comida de verdade e do rumo das vidas.

- Zé e aquele véio do demônio. Largou do teu pé. Já foi encontrar o capeta? Questionei.

- Foi. Morreu final de semana de covid. Não acreditava em doença, dizia que o vinho cria sangue e cura tudo.

- E teus irmãos?

- Se formaram foram embora. Se espalharam pelo Brasil e pelo mundo. Nem quiseram vir no enterro. Disseram que era por causa da pandemia.

- E você o que anda fazendo?

- Fiquei por aqui, alguém tinha que buscar vinho, cuidar do véio, buscar no bar e evitar que se metesse em encrenca ou se machucasse.

 Zé você vai para o céu- comentei

- Não sei se vou para o céu, mas pelo menos não fui jogado no bueiro como ele sempre disse que faria a vida toda. Cresci, cuidei de todos e agora vou  ver se conheço alguém e me casar, viver um pouco que resta. Gostaria de ir lá pros lado do Toldo, Quem sabe seja possível....

-- Zé, foi bom falar com você, que Deus te proteja e quando eu for a Erechim te faço uma visita. Abração. E encerrei a ligação do whatsapp.

 


Nenhum comentário:

Postar um comentário