quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

Amante Argentina

Todos os dias era a mesma coisa. Cera para lustrar o carro, panos macios, aspirador, líquido para deixar os pneus bem pretos. Não podia haver uma poeira naquele veículo. Parte de seus ganhos iam para a manutenção do carro e até sacrificava a família para que o possante ficasse reluzente, lustroso, bonito e arrancasse elogios da vizinhança e das pessoas que viam o carro pelas ruas, pela praça e até em encontros de veículos nos finais de semana.


A esposa já estava cansada daquela rotina. Faltavam algumas coisas na casa, havia necessidade de consertar o telhado que apresentava várias goteiras. Em dias de chuva corria com bacias e com baldes para aparar a água que passava pelas telhas trincadas, ultrapassava o madeirame, o forro e jorrava feito cachoeira em alguns pontos dentro de casa. Começava a apodrecer a madeira e deixar todos em risco de acidentes. E o marido fazia cara de paisagem como se nada fosse com ele. Tudo isso apoiado pelo pai que também gostava do carro antigo. As noites eram de conversar como estava bonito, ver o que poderiam fazer, pequenos consertos. Onde iam buscar peças ou mandar fabricá-las.


Assim passavam dias e noites, semanas e meses. Sem falar que do pouco orçamento familiar tirava dali para manter o veículo fabricado nos anos 30. Foi comprado há uns 20 anos em um ferro-velho e desmontado em casa mesmo, usando a garagem. Ali pai e filho construíram o carro como original. Lixaram e pintaram casa, peça, reconstituiram o motor, tapeçaria, pintura . Era a jóia da coroa.


Churrasco de final de semana, comemorações de aniversário ou até mesmo aceitar um convite para festa do vizinho ou parente era impossível.

  • Não podemos gastar! Sentenciava o marido que a deixava cada vez mais triste, abandonada e desejosa de viver.

Ela era uma mulher bonita, elegante, que chamava a atenção, mas não podia sair para se divertir em família, um passeio, um cinema. Almoçar ou jantar fora era um sonho muito distante que até tinha perdido as esperanças de isto acontecer algum dia. Sozinha em sua solidão de seu claustro que ela dominava da cozinha até a área de serviço, sonhava em conhecer o mar e caminhar na praia, já que moravam em uma cidade distante 600 quilômetros do litoral.

Como seria poder sentir a areia nos pés, a água salgada bater em suas canelas e o sol aquecer seu corpo e lhe dar uma cor mais saudável que certamente a deixaria mais bonita. Era uma mulher que chamava a atenção por seu porte e elegância, mas também se notava a tristeza em seu olhar da prisão doméstica, das privações e de nada poder sonhar, afinal sempre faltava dinheiro para tudo. 


Diariamente o sogro chegava às 17 horas com uma cuia de chimarrão para esperar o filho que em breve estaria em casa. Começaria mais uma longa noite de alisamento ao carro, de admiração a um veterano das estradas, enquanto lhe restava preparar o jantar, depois lavar a louça e panelas e só depois poder descansar. Até quando isso iria? Este seria o seu destino? Sua vida estava dividida. As atenções eram só para o carro antigo e seu alto custo.

Após mais um final de semana de nenhuma mudança, no domingo de manhã por volta das 9h chega o sogro e encontra o filho em prantos. Alguma tragédia aconteceu, o que será que houve. Abriu o portão com uma das mãos enquanto na outra segurava a cuia de chimarrão e a garrafa térmica de cinco litros. 

  • O que é que houve piá? Porque está chorando que nem criança que perdeu o pirulito?

  • Pai houve uma tragédia. Eu quero morrer, não posso viver mais.

  • Mas o que houve? Qual é a besteira que você fez?

  • Veja só. Estendeu a mão e entregou um bilhete ao velho, que mudou de cor, empalideceu, sentou numa cadeira de palhas já gasta. Só retirou algumas lixas já sujas de ferrugem  e começou a ler:

“ Meu estimado. Não aguento mais viver desta maneira. Te amei e respeitei enquanto pude. Estou morrendo a cada dia.  Tudo o que você ganha gasta nessa lata velha.

Vou viver. Quero pisar na areia, conhecer o mal e sentir a brisa em meu rosto. Quero o sol por testemunha da alegria que vou sentir.  Agora você e seu pai terão todo o tempo do mundo para sustentar este carro velho que é mais caro que uma Amante Argentina. Adeus”.






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