O carroceiro, o carreteiro de charque e a mulher surda
- Clap! Clap! Clap! – bateram palmas na frente da casa. Naquela época, campainha era coisa de rico. Os mais simples tinham a cachorrada para avisar das visitas e de intrusos, os amigos do alheio. As pessoas batiam palmas, ou iam entrando nas casas sem cerimônia. Como ninguém atendeu o homem com um embrulho de uma loja de tecidos, preso entre o braço esquerdo e o corpo continuou a bater palmas e resolveu chamar em voz alta a dona da casa:
- DONA ORLANDINAAAAAAA. Tem alguém em casa? DONA ORLANDIIINAAA. Nada de vir alguém, apesar de a casa de madeira estar com as janelas abertas e a porta da frente escancarada, segurada apenas com um pato feito com retalhos de feltro, daqueles cheios de areia para segurar as portas abertas. Como ninguém atendia o homem até questionava se estava no lugar certo, perguntou para alguns vizinhos que confirmaram o endereço certo, porque em cidades pequenas a fofocaiada corre. Se um carro entrava na rua, era motivo de preocupação só poderia ser a Samdu ou a polícia. Às vezes vinha um auto de praça trazer ou buscar alguém mais afortunado ou em necessidade de urgência para ir a um hospital ou embarcar na estação ferroviária ou de ônibus.
Naquela manhã nada de Dona Orlandina aparecer na porta e atender o homem que estava já cansado e quase desistindo, quando chega uma senhora no portãozinho e pergunta o que ele queria. Ela era de pequena estatura, cabelos sempre presos e dava para notar os dedos tortos, devido aos anos de costura, usando dedal, cerzindo a mão, fazendo bainhas de roupas. Aos gritos ele inicia a conversa.
- DONA ORLANDINA, VIM AQUI PORQUE SEU MARIDO, O TELMO CARROCEIRO ME DISSE QUE A SENHORA É COSTUREIRA E É UMA ARTISTA PARA FAZER FAVO DE MEL NUMA BOMBACHA. VOU DESFILAR COM O CTG DIA 20 DE SETEMBRO E QUERO UMA BOMBACHA NOVA. Explicou falando muito alto, praticamente gritando
- Qual é sua graça, senhor? Perguntou Dona Orlandina.
- SOU CHOFER DE ÔNIBUS E CONHEÇO SEU MARIDO. MEU NOME ADROALDO, SEU CRIADO. Respondeu e continuou a conversa: - SEU MARIDO TEM PONTO DE CARROCEIRO LÁ NA PRACINHA DA FERROVIÁRIA E ME MANDOU AQUI.
- Eu entendi seu Adroaldo, mas vamos entrar que estou fazendo um carreteiro que o Telmo gosta. Assim o senhor me explica o desenho do favo de mel da bombacha. Vamos entrando, - convidou a costureira.
- TÁ BOM SENHORA, EU TROUXE UMA CAPA DO DISCO DO TEIXEIRINHA QUE TEM UMA BOMBACHA PARECIDA, DAÍ A SENHORA PODE TER UMA NOÇÃO, detalhou a pleno pulmões que até os vizinhos podiam ouvir a conversa. Uma polaca da frente, daquelas fofoqueiras que ligava o rádio todos os dias às 5 horas em volume alto para ver as notícias policiais e vivia na janela assuntando a vida dos vizinhos não se conteve. Atravessou a rua e foi ver o que era aquela gritaria. Até parecia uma briga de cachorro grande. Os vizinhos eram como parentes. Não havia porta com taramela, uns entravam na casa dos outros sem cerimônia. Privacidade? Isto é coisa moderna. Todos sabiam de tudo e da vida de todos. E nem google existia.
A polaca, gorda, sempre de avental e faltando um dente na frente, entrou esbaforida na sala querendo saber do que se trata se dona Orlandina estava bem. Viu que se tratava de um freguês de costura e foi direto para a cozinha da vizinha ajudar nas panelas para evitar que tudo queime. Já foi cortando o charque que seria usado no carreteiro do Telmo que iria chegar com a carroça perto do meio dia para o almoço. Botou mais dois pedaços de lenha no fogão.
A casa de madeira era de tamanho médio. Subia uma escadinha e dava na varanda, a sala era maior onde dividia uma parte com um conjunto de sofás para as visitas e a sala de costura, dois quartos e uma cozinha nos fundos da casa onde ficava o único banheiro. Nos fundos uma escada lateral que dava acesso ao terreno, ao tanque de roupas embaixo da escada para proteger em dias de sol forte ou chuva. Dava para lavar a roupa. E a horta era bem diversificada. Tinha alface, radicci, cenouras, batatinhas, vagem e vários temperos como salsinha, cebolinha, orégano, manjericão e outros. Na cerca de tela o xuxu se espalhava e sempre era usado para refogados com guizado de segunda, sopas e saladas.
Feita a conversa do pedido da bombacha com favo de mel igual ao do Teixeirinha, o cliente perguntou quando ficaria pronta e qual o preço.
- PAGO PARA O SEU MARIDO? Indagou o cliente.
- Não, o senhor paga para mim sou eu a costureira Ele é o carroceiro. Respondeu irritada com a insinuação de que o marido deveria receber pelo trabalho dela.
Ao sair, Adroaldo desceu uma escadinha que dava para o terreno e subiu outra que dava para a calçada e assim seguir seu caminho quando ouviu Dona Orlandina.
- Seu Adroaldo, que mal lhe pergunte, porque o senhor fala alto gritando comigo?
- SEU MARIDO ME DEU O ENDEREÇO E DISSE QUE EU DEVERIA GRITAR PORQUE A SENHORA É SURDA QUE NEM UMA PORTA.
- Ahhh. Entendi. Disse ela e esperou o marido em casa
Perto do meio dia seu Telmo o Carroceiro chega em casa, para a carroça num terreno baldio em frente da casa, como fazia diariamente. Afrouxa os arreios, deixa os cavalos soltos no gramado. Leva dois baldes de água e uma maçã para cada animal. Eram duas éguas que as chamava de Martha Rocha e Adalgisa Colombo, numa homenagem às misses do Brasil. Sobe a escadinha e senta na varanda, tira as botas e chama Orlandina
- Minha véia, me traga uma cuia para abrir o apetite. Estou com água na boca e este carreteiro de charque deve estar bom uma barbaridade! Senti o cheiro lá da casa do compadre. Comentou elogiando o dote culinário da esposa.
O aroma ia longe, tudo preparado, cebola e alho refogados, charque de boa qualidade, bacon, calabresa, salsinha, cebolinha e três folhas de louro. Estava cremoso naquela panela de ferro em cima do fogão à lenha. E Telmo tomou duas cuias, coçou a barba por fazer e como era sua mania espichava as pontas do bigode deixando-os pontudos. Se preparou para colocar a chinela e seguir para a cozinha e se deliciar no panelão de carreteiro generoso no charque. Esta manta de charque foi trazida por um ferroviário conhecido que fazia a linha até a fronteira lá para os lados de Cacequi e Alegrete.
- Não tem charque, não tem carreteiro. Encilha a carroça e segue teu rumo. Não sou e nunca fui surda. É bom parar com essas brincadeiras. é o terceiro esta semana. Primeiro foi o caminhão da lenha, depois o carrinho de serra-lenha e agora o chofer da bombacha. É sempre a mesma coisa. Hoje vai comer sortido feito lá na ferroviária ou pastel que sobrou do trem.
Para não criar mais confusão, Telmo calçou as botas, preparou a carroça e voltou para o ponto dos carroceiros sem nem uma colherada do carreteiro de charque. Sua brincadeira favorita estava com os dias contados.
Ela nunca foi surda e fazia um arroz de carreteiro de dar inveja. Telmo? se contentou com o sortido de feijão, arroz, ovo e chuleta. O carreteiro com charque? Estava uma delícia. Comi dois pratos cheios. Dona Orlandina se vingou do Telmo dando o panelão de charque para os vizinhos. E para acompanhar milho verde cozido fumegante. Sobremesa ambrosia e depois uma sesteada para fazer a “digestã”, para não dar “congestã”.