terça-feira, 31 de agosto de 2021

O carroceiro, o carreteiro de charque e a mulher surda

 O carroceiro, o carreteiro de charque  e a mulher surda

 

- Clap! Clap! Clap! – bateram palmas na frente da casa. Naquela época, campainha era coisa de rico. Os mais simples tinham a cachorrada para avisar das visitas e de intrusos, os amigos do alheio. As pessoas batiam palmas, ou iam entrando nas casas sem cerimônia. Como ninguém atendeu o homem com um embrulho de uma loja de tecidos, preso entre o braço esquerdo e o corpo continuou a bater palmas e resolveu chamar em voz alta a dona da casa:

 

- DONA ORLANDINAAAAAAA. Tem alguém em casa? DONA ORLANDIIINAAA. Nada de vir alguém, apesar de a casa de madeira estar com as janelas abertas e a porta da frente escancarada, segurada apenas com um pato feito com retalhos de feltro, daqueles cheios de areia para segurar as portas abertas. Como ninguém atendia o homem até questionava se estava no lugar certo, perguntou para alguns vizinhos que confirmaram o endereço certo, porque em cidades pequenas a fofocaiada corre. Se um carro entrava na rua, era motivo de preocupação só poderia ser a Samdu ou a polícia. Às vezes vinha um auto de praça trazer ou buscar alguém mais afortunado ou em necessidade de urgência para ir a um hospital ou embarcar na estação ferroviária ou de ônibus.

 

Naquela manhã nada de Dona Orlandina aparecer na porta e atender o homem que estava já cansado e quase desistindo, quando chega uma senhora no portãozinho e pergunta o que ele queria. Ela era de pequena estatura, cabelos sempre presos e dava para notar os dedos tortos, devido aos anos de costura, usando dedal, cerzindo a mão, fazendo bainhas de roupas. Aos gritos ele inicia a conversa.

 

- DONA ORLANDINA, VIM AQUI PORQUE SEU MARIDO, O TELMO CARROCEIRO ME DISSE QUE A SENHORA É COSTUREIRA E É UMA ARTISTA PARA FAZER FAVO DE MEL NUMA BOMBACHA. VOU DESFILAR COM O CTG DIA 20 DE SETEMBRO E QUERO UMA BOMBACHA NOVA. Explicou falando muito alto, praticamente gritando

 

-  Qual é sua graça, senhor? Perguntou Dona Orlandina.

 

- SOU CHOFER DE ÔNIBUS E CONHEÇO SEU MARIDO. MEU NOME ADROALDO, SEU CRIADO. Respondeu e continuou a conversa: - SEU MARIDO TEM PONTO DE CARROCEIRO LÁ NA PRACINHA DA FERROVIÁRIA E ME MANDOU AQUI.

 

- Eu entendi seu Adroaldo, mas vamos entrar que estou fazendo um carreteiro que o Telmo gosta. Assim o senhor me explica o desenho do favo de mel da bombacha. Vamos entrando, - convidou a costureira.

 

- TÁ BOM SENHORA, EU TROUXE UMA CAPA DO DISCO DO TEIXEIRINHA QUE TEM UMA BOMBACHA PARECIDA, DAÍ A SENHORA PODE TER UMA NOÇÃO, detalhou a pleno pulmões que até os vizinhos podiam ouvir a conversa. Uma polaca da frente, daquelas fofoqueiras que  ligava o rádio todos os dias às 5 horas em volume alto para ver as notícias policiais e vivia na janela assuntando a vida dos vizinhos não se conteve. Atravessou a rua e foi ver o que era aquela gritaria. Até parecia uma briga de cachorro grande. Os vizinhos eram como parentes. Não havia porta com taramela, uns entravam na casa dos outros sem cerimônia. Privacidade? Isto é coisa moderna. Todos sabiam de tudo e da vida de todos. E nem google existia.

 

A polaca, gorda, sempre de avental e faltando um dente na frente, entrou esbaforida na sala querendo saber do que se trata se dona Orlandina estava bem. Viu que se tratava de um freguês de costura e foi direto para a cozinha da vizinha ajudar nas panelas para evitar que tudo queime. Já foi cortando o charque que seria usado no carreteiro do Telmo que iria chegar com a carroça perto do meio dia para o almoço. Botou mais dois pedaços de lenha no fogão. 


A casa de madeira era de tamanho médio. Subia uma escadinha e dava na varanda, a sala era maior onde dividia uma parte com um conjunto de sofás para as visitas e a sala de costura, dois quartos e uma cozinha nos fundos da casa onde ficava o único banheiro. Nos fundos uma escada lateral que dava acesso ao terreno, ao tanque de roupas embaixo da escada para proteger em dias de sol forte ou chuva. Dava para lavar a roupa. E a horta era bem diversificada. Tinha alface, radicci, cenouras, batatinhas, vagem e vários temperos como salsinha, cebolinha, orégano, manjericão e outros. Na cerca de tela o xuxu se espalhava e sempre era usado para refogados com guizado de segunda, sopas e saladas.


Feita a conversa do pedido da bombacha com favo de mel igual ao do Teixeirinha, o cliente perguntou quando ficaria pronta e qual o preço.

 

- PAGO PARA O SEU MARIDO? Indagou o cliente.


- Não, o senhor paga para mim sou eu a costureira Ele é o carroceiro. Respondeu irritada com a insinuação de que o marido deveria receber pelo trabalho dela.

 

Ao sair, Adroaldo desceu uma escadinha que dava para o terreno e  subiu outra que dava para a calçada e assim seguir seu caminho quando ouviu Dona Orlandina.

 

- Seu Adroaldo, que mal lhe pergunte, porque o senhor fala alto gritando comigo?


- SEU MARIDO ME DEU O ENDEREÇO E DISSE QUE EU DEVERIA GRITAR PORQUE A SENHORA É SURDA QUE NEM UMA PORTA.


- Ahhh. Entendi. Disse ela e esperou o marido em casa

 

Perto do meio dia seu Telmo o Carroceiro chega em casa, para a carroça num terreno baldio em frente da casa, como fazia diariamente. Afrouxa os arreios, deixa os cavalos soltos no  gramado. Leva dois baldes de água e uma maçã para cada animal. Eram duas éguas que as chamava de Martha Rocha e Adalgisa Colombo, numa homenagem às misses do Brasil. Sobe a escadinha e senta na varanda, tira as botas e chama Orlandina


- Minha véia, me traga uma cuia para abrir o apetite. Estou com água na boca e este carreteiro de charque deve estar bom uma barbaridade! Senti o cheiro lá da casa do compadre. Comentou elogiando o dote culinário da esposa.


O aroma ia longe, tudo preparado, cebola e alho refogados, charque de boa qualidade, bacon, calabresa, salsinha, cebolinha e três folhas de louro. Estava cremoso naquela panela de ferro em cima do fogão à lenha. E Telmo tomou duas cuias, coçou a barba por fazer e como era sua mania espichava as pontas do bigode deixando-os pontudos. Se preparou para colocar a chinela e seguir para a cozinha e se deliciar no panelão de carreteiro generoso no charque. Esta manta de charque foi trazida por um ferroviário conhecido que fazia a linha até a fronteira lá para os lados de Cacequi e Alegrete.


- Não tem charque, não tem carreteiro. Encilha a carroça e segue teu rumo. Não sou e nunca fui surda. É bom parar com essas brincadeiras. é o terceiro esta semana. Primeiro foi o caminhão da lenha, depois o carrinho de serra-lenha e agora o chofer da bombacha. É sempre a mesma coisa. Hoje vai comer sortido feito lá na ferroviária ou pastel que sobrou do trem.

 

Para não criar mais confusão, Telmo calçou as botas, preparou a carroça e voltou para o ponto dos carroceiros sem nem uma colherada do carreteiro de charque. Sua brincadeira favorita estava com os dias contados. 


Ela nunca foi surda e fazia um arroz de carreteiro de dar inveja. Telmo? se contentou com o sortido de feijão, arroz, ovo e chuleta. O carreteiro com charque? Estava uma delícia. Comi dois pratos cheios. Dona Orlandina se vingou do Telmo dando o panelão de charque para os vizinhos. E para acompanhar milho verde cozido fumegante. Sobremesa ambrosia e depois uma sesteada para fazer a “digestã”, para não dar “congestã”. 

 

 


sábado, 28 de agosto de 2021

O sogro conta gotas e a volta de linguiça

 O sogro conta gotas e a volta de linguiça


Rita acordou emburrada, com cara de poucos amigos e foi direto para a cozinha, do pequeno apartamento localizado no centro de Curitiba, perto do Largo da Ordem. Era um desses apartamentos antigos, pequenos que para pensar tinha de sair para outra peça. Estava incomodada, já nas primeiras horas de domingo. Nem preparou um chimarrão , foi direto passar um café preto. Aqueceu a água, colocou já quatro colheres de café no coador de algodão, que foi feito por sua avó, lá no oeste do Paraná. Não tinha dúvida, café forte, porque  furiosa estava bufando pelas ventas. 


Sentou na pequena sacada, onde havia um banquinho com a estampa do Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense, que seu pai lhe deu quando Rita foi estudar na capital paranaense para ser advogada . Estava nos planos um dia voltar para trabalhar na banca do pai, que já estava estabelecido. 


Meses antes havia conhecido um rapaz chamado Roberto, com quem começou um namoro. Ela sempre repetia que nada queria sério com ele, pois tinha uma meta que era se formar, voltar para a cidade do oeste paranaense, advogar com o pai e depois ser juíza ou promotora. Começaram uma relação de amizade colorida, que foi crescendo. Já não se viam mais uma vez por semana, ou encontros pelos bares e noitadas. Queriam se ver todos os dias. E ela sempre repetia, não me leve a sério tenho minhas metas. Isto durou por meses, até este domingo de setembro. Era próximo ao feriadão de 7 de setembro. Curitiba estava, como é característico, com cerração, frio e uma leve garoa que atrapalhava a visão que tinha entre os prédios.


Roberto, meio folgado levantou, perguntou se tinha um mate pronto. Foi a gota d'água para a explosão de fúria de Rita:

- O que está pensando, que sou sua empregada? Vá fazer! Gritou e certamente os vizinhos ouviram

- O que houve, acordei agora, porque está assim?

- Estou cansada disso. Até quando vamos ficar assim? Você vai lá em casa falar com meus pais. Sentenciou a futura advogada e quem sabe um dia juíza.

- Mas você mesmo que não queria nenhum envolvimento mais sério, relembrou

- Eu viajo hoje e se você quiser continuar me vendo, pegue o ônibus no feriadão e vá lá conhecer minha família. Agora pega tuas coisas e vai- te embora.

Roberto recolheu as roupas e saiu do apartamento sem falar nada. Também não bateu a porta.


Passados uns dias passou na rodoviária de Curitiba, foi até o guichê da Princesa dos Campos e perguntou para o atendente quanto custava uma passagem e os horários para Beltrão. 


Dois dias antes do feriado foi para a rodoviária, passagem comprada e seguiu sovando as costelas durante quase 15 horas. Curitiba, Campo Largo, Guarapuava, Pato Branco e finalmente Francisco Beltrão. Já havia avisado de sua ida, final da tarde o verdão estacionou na rodoviária. Roberto se espreguiçou, pegou a bolsa de mão que estava no bagageiro e esperou os da frente descer. Ficou olhando pra ver se o haviam ido buscar. Viu Rita sorridente e apreensiva com a descida do namorado. Ele meio envergonhado desceu as escadinhas do ônibus, como querendo voltar para sua poltrona e retornar, mas não tinha volta. Teria de encarar.


Atravessou o murinho que separa os ônibus do local de embarque e foi encontrar Rita. Se abraçaram e ela o apresentou

- Este é meu pai, queria muito conhecer você.

- Prazer seu Fausto

- Seja bem vindo, vamos lá para casa. Já preparamos um sofá para você. Roberto não gostou muito, afinal dormia com a filha dele tranquilamente em Curitiba, mas ali teria de ficar no sofá?


Seguiram para o estacionamento onde um vistoso Fusca estava estacionado. Rita sentou no banco de trás e Roberto ao lado do sogro. Curioso, reparou no veículo que estava limpo, mas o banco do motorista tinha um tapete de retalhos, possivelmente para não estragar o estofado e nas costas do motorista uma espécie de proteção com bolinhas de madeira. Imaginou que era para a coluna, massagear as costas.  Reparou que o marcador de gasolina estava na reserva e querendo puxar conversa comenta que o tanque está ,meio vazio, que seria bom botar um pouco de gasolina para não ficarem na estrada. Neste instante Rita cutuca Roberto para ficar quieto.

- Não precisa, moramos pertinho , explica o seu Fausto. Mais tarde Rita explica a Roberto que o velho é econômico, e no posto de gasolina é conhecido com o “véio conta-gotas” porque ele nunca encheu o tanque do Fusca. Só coloca o tanto de gasolina para ir a determinado lugar e voltar. Só abastecia pequenos valores para pequenos percursos. Naquele diz botou R$ 5,00 de gasolina para ir até a rodoviária e voltar. Fusca na garagem elevado com tocos de angelin para não pegar umidade e não apodrecer os pneus e um pano para cobrir o carro e não pegar frio, mesmo dentro da garagem que ficava no porão da casa.


Chegaram em casa e foi servido um café reforçado antes de ir descansar. Mesa farta com pão feito em casa, cuca, nata, salame, queijo, geleias, schimia, frutas. Roberto se atracou, com vontade de leão. Depois foram dormir, Na manhã seguinte o chimarrão estava pronto, tomaram umas cuias e foram visitar a parentagem que morava ali no bairro mesmo. Terra vermelha, achou diferente. Havia levado roupas claras, camisa branca, uma calça de linho também branca. Não durou muito para ficar da cor da terra paranaense.


Avisou Rita que no almoço não gostaria de cantoria de velho italiano com a cara cheia de vinho. Ela recomendou à mãe, Dona Otília que falasse com o pai que nada de cantoria.

Na hora do almoço um festival gastronômico, espaguete feito em casa, leitão assado, queijos, pães, ,molhos de dar água na boca. E de sobremesa ambrosia e arroz doce. Não poderia ser nada melhor. Seu Fausto veio com um garrafão daqueles com revestimento de proteção envolto em vime. Abriu a rolha, encheu os copos de cada um, fez um brinde ao genro e já anunciou que no dia do casamento a festa vai ser por conta dele. Roberto ficou quieto e num gole só esvaziou o copo. Pediu mais. O véio serviu. Após o almoço e antes da sobremesa seu Fasuto não se conteve, contrariando as recomendações;

 - La verginella non posso trovar la

La verginella non posso trovar la

Solo mi basta che la siai bella

E ciomba la ri la re la

E viva l'amor.


O futuro noivo já com os cornos cheio de vinho barato nem deu ouvidos ao canto do sogro e se levantou. Não gostava deste tipo de música. Foi se deitar para contrariedade de seu Fausto. Deitou no sofá, como havia preparado e enquanto o sono não vinha ficou ouvindo as conversas e a cantoria desafinada.


- Este moleque, vem na minha casa, come duas voltas de linguiça de pernil, uma peça de queijo, um pão inteiro e ainda não quer me ouvir cantar. Tomara que pegue o rumo dele ainda hoje. Comentou seu Fausto para Dona Otília

- Cala boa véio, ele vai se casar com a Ritinha, vai entrar para a família.

- Duvido. Este “piazon” vai sumir, previu o sogro


Lá pelas cinco da tarde Roberto levanta, só viu a mancha de baba que deixou na almofada do sofá da sala. Meio cambaleando foi ao banheiro lavou o rosto pegou sua sacola e foi para a varanda na frente da casa onde estava o casal.


- Obrigado pela hospitalidade mas tenho de ir. Vou pegar o ônibus às seis da tarde porque tenho trabalho amanhã. Muito obrigado por tudo


Se despediu e nem quis carona no fusca até a rodoviária. Ritinha também não o acompanhou. Viajou a noite toda de Princesa dos Campos. No dia 8 de setembro da rodoviária de Curitiba, foi direto ao banco onde trabalhava. Na mesma noite deixou um bilhete no apartamento de Ritinha:


- Adorei sua família e você, mas não podemos continuar num namoro a distância, Fui transferido para outra cidade. Antes disso havia pedido demissão do banco, pegou suas coisas no apartamento que morava e comprou passagem para Joinville. Não havia celular, e telefone era coisa de rico. Ficou uns dias numa ilha lá pelos lados de São Francisco do Sul para pensar do que se livrou.


Meses depois Ritinha falou para os pais e ouviu do seu Fausto

- Ainda bem que aquele imprestável se foi.   Perdi  cinco reais de gasolina, duas voltas  de linguiça de pernil, um salame e uma peça de queijo. Se ele ficasse, teria que vender a casa só para dar comida para aquele comer e dorme.


E Ritinha? Virou juiza e hoje está em um município paranaense quase na divisa com São Paulo. Roberto? bem foi visto jogando dominó e bebendo Rabo de Galo num boteco no Ervino.








terça-feira, 17 de agosto de 2021

Perro Missioneiro

 Perro Missioneiro



  • Me serve um liso daquela! apontou para a garrafa que estava na prateleira do boteco.

  • Está en un dolor de cornudo hoy? Questionou o bolicheiro castelhano que mantinha o boteco que é uma mistura de bar, armazém e parrilla. 


O estabelecimento de respeito ficava numa rua lateral da General Vitorino, em Alegrete, chamada de Fronteira Oeste, onde havia também algumas casas com moças que prestavam serviços, principalmente para a milicada. Quando saia o soldo elas compravam vestido novo e os perfumes  Amor Gaúcho e Siete Brujas, que vinha do Uruguai, se espalhavam pelos campos próximos que dava para sentir até lá no 6º Regimento de Cavalaria.

 

  • Cállate, sírvele la caña y mira si queda algo de la parrilla de ayer para el perro, ordenou o sargento Sapo. 


O nome dele era Antonio, mas aos 18 foi prestar o serviço militar. Atravessou o Estado de trem, com baldeações em Santa Maria, Cacequi e finalmente Alegrete, onde se apresentou no 6º Regimento de Cavalaria. Passou o período de recruta, engajou e ficou. Fez curso de cabo e seguiu carreira até chegar a sargento. Ao ir para reserva foi como suboficial. Estava com a guaiaca cheia. Mas o apelido Sapo vem da turma do quartel, pois diziam que ela tinha uma cara de sapo atolado. O que significa ninguém sabe, mas pegou.


O castelhano pegou um copo liso alto, nem precisou dosador. Bolicheiro antigo sabe a medida certa só no olhar. Como viu que o Sapo estava meio incomodado com alguma coisa já quebrou um galho de arruda que cultivava num vaso que ficava em cima do balcão ao lado do baleiro. Servia para espantar mau olhado, curar bicheira, piolho, pulga, vermes, fazer reza e benzedura, temperar o aperitivo e também decorava o ambiente e dava uma limpada no ar purificando do cheiro de fumaça de cigarro e charutos. Macerou e misturou na branquinha, que veio lá de Santo Antônio da Patrulha, onde se faz a melhor rapadura do mundo e uma cachaça melhor que uísque escocês. Nem paraguaio consegue falsificar a famosa cachaça de patrulhense. Sapo sorvia um gole e quebrava um pedaço de rapadura para adocicar o paladar. Assim levava seus pensamentos longe.


  • Maldita sea, no puedo olvidar - resmungava às vezes e o bolicheiro fazia que nem ouvia mais. 


Escorado no balcão do bar que já tinha impregnado em suas paredes o cheiro de graxa de ovelha por causa da parrilla cujo fogo não apagava nunca, Sargento Sapo mirava um pequeno palco onde os músicos se apresentavam toda sexta-feira, uma mesa de pista que era sua preferida nos tempos de juventude e o pequeno salão de 4 x 4 onde dava para dançar. Aprendeu a difícil arte do tango e da milonga. Bolero era coisa fácil, dois pra lá, dois pra cá. A orquestra era de três músicos sendo dois aquartelados e um argentino que tocava bandoneon. Um milico tocavam bateria e outro contrabaixo, daqueles de orquestra. A cantoria era livre. quem sabia alguma letra podia subir ao palco.


A decoração era primorosa. Nas paredes de madeira e também nos banheiros feitos num puxadinho de costaneira de pinheiro havia fotos de Gardel, de Roberto Carlos, Nelson Gonçalves, Nelson Ned, uma emblemática de Getúlio Vargas montando em um cavalo e com os dizeres : “ Do Pampa ao Catete”, usado em sua campanha à presidência nos anos 30. Ao lado um retrato de Brizola e do João Goulart.  A bandeira do Rio Grande do Sul ficava na parede central, mas chegando perto tinha uns furos de bala e uns riscos de faca, provavelmente resultado de alguma peleia ou disputa por uma chinoca, o que era comum quando o tempo esquentava.


  • Sapo, este perro tuyo es eterno. Ven aquí contigo desde hace más de 16 años. Ni siquiera tiene dientes. que quieres con el - comentou o dono do boteco com uma faca de prata na mão. A mesma que cortava a carne, tirava sujeiras debaixo das unhas, cortava os petiscos. Bem afiada e servia para apartar peleja também.

  • Es mi amigo. me salvó la vida y lo cuidaré por la eternidad - respondeu o Sargento Sapo já meio emocionado com as lembranças e pelo destravamento da língua devido ao liso duplo, sem gelo.


O bolicheiro lembra do fato, pois ocorreu em sua casa. O cachorro pertencia a uma mulher muito bonita que veio de Corrientes há muitos anos. Morena, cabelos lisos, 1m60, elegante. Sempre de salto alto e vestidos de boa confecção. Gostava de usar lenço nos cabelos para o vento minuano não espalhar. Batom, unhas bem cuidadas e pintadas de vermelho. Seu porte elegância era de “fechar o comércio” por onde passava. Seu perfume era um aroma de pólen que espalhava pelo pampa e encantava. Chegou em Alegrete de carona com um chibeiro em uma camioneta Chevrolet Brasil 58. 


O bolicheiro lembra da tarde, que ela desceu da camionete na Vitorino perto do Poupex. Agradeceu a carona e começou a caminhar, quando viu na lateral o dono do bar na porta que a observava. Chegou, cumprimentou-o, pediu uma gasosa e perguntou onde poderia se hospedar. Para sorte dela havia um quartinho no puxado lá nos fundos, onde ela poderia ficar e quem sabe trabalhar ali no estabelecimento. 


Aceitou na hora e já se instalou. Limpou o  pequeno quarto, trocou roupas de cama, pois as que havia estavam encardidas. Tratou de pintar as paredes de lilás e na semana seguinte comprou um eletrofone Phillips, que era um pequeno toca-discos portátil que funcionava com energia elétrica e também com pilhas grandes. Carregava com ela alguns discos de boleros e tangos e um pequeno de Roberto Carlos - Amada Amante. Na loja de móveis usados do turco Farid viu uma penteadeira bonita de mogno lustrado. Havia gavetas, um espelho central e dois laterais que se fechavam com a dobradiça. Os entalhes eram coisa de artista. Este móvel deve ter sido de gente rica. O carroceiro entregou a penteadeira que quase não entrou na porta, mas despregaram duas tábuas para alargar a entrada e deu certo. 


Delicadamente ela decorou o quarto e em cima do novo móvel seus perfumes, talco, cremes, pinturas, uma caixinha de música que trouxe com seus pertences. A caixinha quando aberta tocava Por una cabeza enquanto a bonequinha caracterizada de dançarina de tango rodava.


O sargento Sapo que frequentava o respeitável local, quando a viu já veio em sua cabeça os versos de um tango sofrido e não teve dúvidas: Serás minha! Foi paixão à primeira vista. O Romance durou algum tempo. Ninguém sabe de onde ela veio e nada de sua vida. Mas era muito confiante, elegante, boa conversa. Até parecia que tinha estudo.


  • Sargento, sé más o menos de la historia, pero ¿cómo te salvó la vida este perro?

  • A Florência Candelária  me ha encantado desde que la vi. Empezamos a encontrarnos cuando yo estaba fuera del cuartel. Esto continuó durante mucho tiempo. Una tarde llegué e iba a entrar a la habitación. Pero este perro salió de la nada, como si fuera una orden del cielo y gruñó, me agarró del pie, me rasgó los pantalones y no pudo. Y le agradezco por salvarme la vida. Estaba con Dom Florisbal, el marido del que huyó. Allí, en las Corrientes, tiene muchas muertes a sus espaldas. Me matarían como a un cerdo si me pilla con ella. Entonces este perro me advirtió de una muerte anunciada y nos hicimos amigos. Así que lo cuido.

  • Conserve esta amizade! reafirmou o bolicheiro trazendo uma tábua com chinchulin, molleja e riñones para el perro.


Naquela tarde, de sexta-feira 13 de agosto, o  Sargento Sapo e seu cachorro Missioneiro, embarcaram no Chevete 74 atravessaram a cidade e seguiram até ponte da avenida Ibicuí, onde sempre iam. Sapo sentou, numa cadeira de praia embaixo da ponte do trem, onde se formou uma praia de areia,  para passar o tempo entre uma cuia e outra de chimarrão. Enquanto Sapo mateava e lia a Bíblia, solito, alternando entre uma leitura ao sol e um cochilo, o perro deitado de lado, cochilava por um longo tempo antes de voltar para casa e passar a noite no pelego quentinho. 


sexta-feira, 6 de agosto de 2021

Algum Recado?

 Algum Recado?



Seu Nico, como sempre, levantou às 5 horas daquele domingo frio de agosto. Lavou o rosto, vestiu um casaco de lã e colocou seu melhor lenço no pescoço. Principiou o fogo no fogão à lenha e colocou a chaleira de ferro sobre a chapa. Enquanto a água ia esquentando, pegou a cuia, colocou erva-mate, e um  pouco de água para ir cevando devagar. Sentou na caixa de lenha, que ficava na lateral da parede que dava de lado para o fogão, assim podia matear, aproveitar o calor e observar, pela janela o amanhecer que vinha meio com vergonha derretendo a geada e dissipando a cerração. 


Água aquecida, encheu uma pequena garrafa térmica que prendia embaixo do braço esquerdo, e na mão direita a cuia de mate que ia sorvendo. Antes de abrir a porta e descer a escada para caminhar pelo pátio, tirava a alpargata e enfiava os pés numa botina mais adequada para quebrar o gelo. Primeira companhia que via era um guaipeca malhado com pelagem preta e branca que ficava embaixo do forno de barro onde era feito o pão. Nunca acreditou em pão de padaria. Gostava de comer o que dava “sustança”. Pão de padaria só tem “formento” e “bromato” insistia.


Após percorrer o terreno, olhando os pés de bergamota, laranja, caqui, jabuticaba, limão, ariticum, canteiro de moranguinhos, colheu duas folhas de cancorosa e um ramo de carqueja. Abriu a garrafa térmica e colocou dentro da água quente para temperar a água do mate.


Naquele domingo de agosto seu Nico, aposentado, após 40 anos de trabalho como marceneiro em uma fábrica de móveis, apenas encostou a porta e desceu a rua de sua casa em direção ao açougue que ficava distante uns 500 metros da casa dele. O vira-latas chamado Benito (em alusão a Mussolini) o acompanhava na caminhada. Ia cumprimentando a vizinhança e quando chegou na frente da casa da dona Ediléia, perguntou: Algum recado? e ela respondeu: Nada seu Nico, quem sabe mais tarde - falou  dando esperanças;


Chegou no Açougue do Waldir, um açougueiro típico, de mais ou menos 1m90cm de altura e certamente 130 quilos. Sempre exibindo uma faca prateada de 30 centímetros e fio de dar inveja a qualquer churrasqueiro. Cabo feito de chifre de boi. Nunca largava a faca que usava para os cortes que os clientes pediam. No ombro pendurava sempre um pano que deveria ser branco para enxugar as mãos e limpar o balcão a cada atendimento e também para espantar as moscas que sempre aparecem quando se mexe com carne.


  • Buenas Waldir! 

  • Bom dia Seu Nico.

  • Tem ovelha?

  • Tem sim, chegou ontem e está bem fresquinha.

  • Me vê um quarto de ovelha, dois quilos de camponesa, uma alcatra com osso, meio quilo de batatas e umas quatro cebolas para assar, das graúdas- recomendou o cliente.

  • Tá bom Tio Nico. Mas a conta vai ficar alta. Alertou o açougueiro.

  • Depois eu acerto é que hoje, você sabe, né.

  • Pois é, a piazada vem passar o dia com o senhor?

  • Espero, mas ninguém me confirmou nada ainda.

  • Está aqui Seu Nico Vai precisar de carvão?

  • Não, eu tenho bastante lenha, vou assar direto no fogo.


Com a garrafa térmica embaixo do braço esquerdo, a cuia na mão direita e duas sacolas uma em cada mão Seu Nico seguiu para casa, com o Benito ao seu lado. Foram a trotezito e passando na frente da casa da dona Ediléia, a única a ter telefone nas redondezas, apenas olhou para ela e a vizinha balançou a cabeça. Nada! Nenhuma novidade.


Chegou em casa, empurrou a porta com o pé, já que nem havia trancado, pois voltaria rápido. Colocou tudo em cima da mesa. Descascou as batatas, picou e colocou na panela em cima do fogão a lenha. esperou cozinhar, escorreu e já bateu os ovos para fazer a maionese. Salada pronta colocou na Frigidaire. 


Agora já está na hora de prender fogo na lenha até formar o braseiro e colocar a carne mais perto do meio-dia. Separou a lenha mais seca que ficava no porão e com um risco de fósforo já pegava fogo, ao contrário do caminhão Chevrolet da fábrica de móveis que ele trabalhou por 40 anos, nunca pegava. Sempre tinham de empurrar e o patrão muquirana, não queria gastar num caminhão novo. Seu Nico era bom fazedor de móveis, começou no tempo que faziam móveis em madeira de lei, nada de laminados. Dizem que era um artista até com formão para os entalhes na decoração de camas, mesas, guarda-roupas e penteadeiras que encantavam as damas da alta sociedade cujos maridos podiam pagar por tão raro, bonito e caro mobiliário.


Seu Nico era um senhor que vivia sozinho há anos, desde que a mulher o deixou com três filhos, após conhecer um sujeito de parque de diversões que veio à cidade. Para decepção , o sujeito sem eira nem beira, como ele se referia, nem artista era. Vendia Maçã do Amor, no parque, gauderiando, de cidade em cidade.  Mas como diz  a música de Lupicínio Rodrigues  “mulher tem asas na ponta do coração”. Com três filhos pequenos continuou a criá-los. Um estudou para ser engenheiro mecânico e estava bem trabalhando em uma fábrica de automóveis em São Paulo. O do meio estudou para ser engenheiro eletricista e foi para o interior de Goiás fazer barragens e a menor, a Rosimeri Luciana se formou professora de física e matemática, dava aulas na rede estadual lá pelos lados de Sananduva. 


Lá perto das 11 horas da manhã fogo já no ponto de braseiro, seu Nico espetou o quarto da ovelha, jogou sal grosso por cima e colocou sobre o brasileiro no alto  para assar devagar. Já aproveitou  pra esperar as cebolas, linguiças e a alcatra. 


Assim que eu gosto Benito. Fartura na mesa! resmungou seu Nico para o vira-latas que estava na volta dos pés do dono estimulado pelo cheiro da graxa pingando no braseiro.


Sentado perto do fogo, virava os espetos para assar por igual, trocou o mate por uma garrafa de Serramalte vinda lá de Getúlio Vargas. Encheu um copo e bebeu com vontade em um gole só. O domingo estava frio, em torno de 10 graus, mas com sol claro e aproveitou para entornar um gole de conhaque de alcatrão para esquentar as costelas.


  • Benito, cuida da carne que já volto. - ordenou ao companheiro quando novamente foi até a casa da vizinha. Olhou lá de frente da calçada e ela balançou a cabeça de novo.


Voltou para casa e sentou num cepo de angico que mantinha perto da churrasqueira. Bebeu mais um copo de Serramalte, pegou a prateada e cortou o garrão do pernil, há quem diga que é a parte mais saborosa, o corte do patrão,  e deu para Benito.


  • Benito, você também é meu filho querido. Mas eu só queria um recado,  que dissessem  que estão todos bem.

Benito olhou para seu Nico, lambeu sua mão e com um olhar profundo nada precisou dizer. Estava feliz comemorando o dia dos Pais.


terça-feira, 3 de agosto de 2021

Confissões íntimas sussurradas

 Confissões íntimas sussurradas



Esta semana, compartilhei dois filmes em 360 feitos pelo meu amigo de infância Clóvis Guimarães, de dupla nacionalidade, pois às vezes é erechinense, às vezes é alegretense. Mas ele filmou a belíssima Igreja de São Pelegrino em Caxias do Sul e posso testemunhar sua beleza, pois lá morei durante três anos.


Sempre gostei de parar em frente a São Pelegrino e admirar a imponência de sua fachada, com uma iluminação perfeita que valorizava sua arquitetura. Certa tarde de sábado subi lentamente os degraus da escada que dá acesso à porta principal. Ali já começa o deslumbramento. As portas de bronze, cuja arte retrata a Justiça, a Paz e o Amor, foram criadas por artista italiano e fundidas em Caxias. É admirável.


Ao estar contemplando a beleza e os detalhes da porta central, minha concentração foi quebrada pelo andar de uma vistosa dama que subia a escadaria. Vestia preto, envolta em um ar de mistério. Calça preta, botas para aquecer os pés e as longas pernas do rigoroso frio do inverno caxiense, usava um sobretudo preto com cachecol de lã. Um lenço cobria seu cabelo loiro. Era alta, perto de 1,70 m e acredito que de descendência germânica pelos traços de seu rosto e pelos belos olhos cor de mel esverdeados, que descobri quando ela tirou os óculos escuros. No braço esquerdo uma bolsa discreta, de boa qualidade e na mão direita um rosário. Parou ao meu lado, olhou atentamente desde o campanário até o chão. Tirou as luvas lentamente, suspirou profundamente e entrou na porta principal. 


Atravessou a imensa chapa de bronze esculpida. Parou em frente a pia de água benta, molhou o dedo médio e fez o sinal da cruz. Dobrou elegantemente os joelhos em sinal de reverência e entrou na igreja. Seguiu pela lateral direita em direção ao confessionário. Sentou e aguardou alguns segundos. O padre descortinou a abertura e pediu que falasse. Também entrei e sentei em um dos bancos próximo do confessionário tentando ouvir algo. Só consegui ouvir a penitência dada pelo sacerdote: 10 Pai Nosso, 8 Ave Maria e 6 Salve Rainha. Imaginei que a confissão foi bem pesada, algo ocorreu.


Ela saiu do confessionário, segurando o terço, caminhando lentamente e com olhar para o chão em ato de constrição. Sentou duas fileiras a frente mais perto do altar, ajoelhou e cumpriu sua penitência. Em seguida chega uma amiga e senta ao lado. Igualmente elegante, morena, com um sorriso amigável. Um leve cumprimento entre as duas e se mantiveram por alguns segundos em silêncio, até que a que se confessou não se conteve:

  • Preciso de contar. Não aguento mais esta angústia.

  • Mas você já confessou e cumpriu sua penitência. Não te aliviou? perguntou a amiga, pegando sua mãe carinhosamente e olhando nos olhos.


Eu de orelha em pé que nem cachorro perdigueiro querendo saber mais do assunto. Me ajoelhei para ficar uns centímetros mais perto e tentar ouvir a conversa. Disfarçava olhando as pinturas que ficavam belíssimas como a luz que passava pelos vitrais laterais em formato vertical pontiagudo intercalado com colunas cada uma com um anjo. Por momentos me perdi no encantamento das pinturas e na réplica da Pietà de Michelangelo que foi um presente do Papa Paulo VI


  • Me aliviou, me sinto melhor, mas não consigo esquecer. Preciso mais e de novo.Comentou a mulher que se confessou.

  • Você é louca, sossega ! Até parece guria nova. E também você nunca foi santinha. Tem seu casamento de 30 anos, também teve teus namoricos durante este tempo todo, que eu sei. E teve  apenas o sol e lua como testemunhas. Porque só agora isto está te carcomendo internamente? 

  • Não sei te explicar, foi apenas uma vez, na tarde de sexta, mas foi o melhor e mais inesquecível. Contou sussurrando para a amiga. Fez um longo silêncio e ficou olhando o painel O Juizo final, pintado por Aldo Locatelli e Emilio Sessa. 

  • Mas qual a diferença? questionou a confidente.

  • Foi a única vez que me senti amada. 

  • Te entendo. Mas esquece e vamos tomar um café e voltamos para a missa das cinco da tarde, tentou desconversar e animar a amiga de todas as horas.


Ouvi a confissão íntima sussurrada, rezei um Pai Nosso, uma Ave Maria e sai pela Porta do Amor, que fica do lado esquerdo da igreja.Desci as escadas e parei novamente. Me virei para admirar novamente a imponência de São Pelegrino e tentar esquecer os segredos que neste dia apenas o pároco, Virgem Maria de Pietà, os anjos de Locatelli e eu ouvimos.