terça-feira, 17 de agosto de 2021

Perro Missioneiro

 Perro Missioneiro



  • Me serve um liso daquela! apontou para a garrafa que estava na prateleira do boteco.

  • Está en un dolor de cornudo hoy? Questionou o bolicheiro castelhano que mantinha o boteco que é uma mistura de bar, armazém e parrilla. 


O estabelecimento de respeito ficava numa rua lateral da General Vitorino, em Alegrete, chamada de Fronteira Oeste, onde havia também algumas casas com moças que prestavam serviços, principalmente para a milicada. Quando saia o soldo elas compravam vestido novo e os perfumes  Amor Gaúcho e Siete Brujas, que vinha do Uruguai, se espalhavam pelos campos próximos que dava para sentir até lá no 6º Regimento de Cavalaria.

 

  • Cállate, sírvele la caña y mira si queda algo de la parrilla de ayer para el perro, ordenou o sargento Sapo. 


O nome dele era Antonio, mas aos 18 foi prestar o serviço militar. Atravessou o Estado de trem, com baldeações em Santa Maria, Cacequi e finalmente Alegrete, onde se apresentou no 6º Regimento de Cavalaria. Passou o período de recruta, engajou e ficou. Fez curso de cabo e seguiu carreira até chegar a sargento. Ao ir para reserva foi como suboficial. Estava com a guaiaca cheia. Mas o apelido Sapo vem da turma do quartel, pois diziam que ela tinha uma cara de sapo atolado. O que significa ninguém sabe, mas pegou.


O castelhano pegou um copo liso alto, nem precisou dosador. Bolicheiro antigo sabe a medida certa só no olhar. Como viu que o Sapo estava meio incomodado com alguma coisa já quebrou um galho de arruda que cultivava num vaso que ficava em cima do balcão ao lado do baleiro. Servia para espantar mau olhado, curar bicheira, piolho, pulga, vermes, fazer reza e benzedura, temperar o aperitivo e também decorava o ambiente e dava uma limpada no ar purificando do cheiro de fumaça de cigarro e charutos. Macerou e misturou na branquinha, que veio lá de Santo Antônio da Patrulha, onde se faz a melhor rapadura do mundo e uma cachaça melhor que uísque escocês. Nem paraguaio consegue falsificar a famosa cachaça de patrulhense. Sapo sorvia um gole e quebrava um pedaço de rapadura para adocicar o paladar. Assim levava seus pensamentos longe.


  • Maldita sea, no puedo olvidar - resmungava às vezes e o bolicheiro fazia que nem ouvia mais. 


Escorado no balcão do bar que já tinha impregnado em suas paredes o cheiro de graxa de ovelha por causa da parrilla cujo fogo não apagava nunca, Sargento Sapo mirava um pequeno palco onde os músicos se apresentavam toda sexta-feira, uma mesa de pista que era sua preferida nos tempos de juventude e o pequeno salão de 4 x 4 onde dava para dançar. Aprendeu a difícil arte do tango e da milonga. Bolero era coisa fácil, dois pra lá, dois pra cá. A orquestra era de três músicos sendo dois aquartelados e um argentino que tocava bandoneon. Um milico tocavam bateria e outro contrabaixo, daqueles de orquestra. A cantoria era livre. quem sabia alguma letra podia subir ao palco.


A decoração era primorosa. Nas paredes de madeira e também nos banheiros feitos num puxadinho de costaneira de pinheiro havia fotos de Gardel, de Roberto Carlos, Nelson Gonçalves, Nelson Ned, uma emblemática de Getúlio Vargas montando em um cavalo e com os dizeres : “ Do Pampa ao Catete”, usado em sua campanha à presidência nos anos 30. Ao lado um retrato de Brizola e do João Goulart.  A bandeira do Rio Grande do Sul ficava na parede central, mas chegando perto tinha uns furos de bala e uns riscos de faca, provavelmente resultado de alguma peleia ou disputa por uma chinoca, o que era comum quando o tempo esquentava.


  • Sapo, este perro tuyo es eterno. Ven aquí contigo desde hace más de 16 años. Ni siquiera tiene dientes. que quieres con el - comentou o dono do boteco com uma faca de prata na mão. A mesma que cortava a carne, tirava sujeiras debaixo das unhas, cortava os petiscos. Bem afiada e servia para apartar peleja também.

  • Es mi amigo. me salvó la vida y lo cuidaré por la eternidad - respondeu o Sargento Sapo já meio emocionado com as lembranças e pelo destravamento da língua devido ao liso duplo, sem gelo.


O bolicheiro lembra do fato, pois ocorreu em sua casa. O cachorro pertencia a uma mulher muito bonita que veio de Corrientes há muitos anos. Morena, cabelos lisos, 1m60, elegante. Sempre de salto alto e vestidos de boa confecção. Gostava de usar lenço nos cabelos para o vento minuano não espalhar. Batom, unhas bem cuidadas e pintadas de vermelho. Seu porte elegância era de “fechar o comércio” por onde passava. Seu perfume era um aroma de pólen que espalhava pelo pampa e encantava. Chegou em Alegrete de carona com um chibeiro em uma camioneta Chevrolet Brasil 58. 


O bolicheiro lembra da tarde, que ela desceu da camionete na Vitorino perto do Poupex. Agradeceu a carona e começou a caminhar, quando viu na lateral o dono do bar na porta que a observava. Chegou, cumprimentou-o, pediu uma gasosa e perguntou onde poderia se hospedar. Para sorte dela havia um quartinho no puxado lá nos fundos, onde ela poderia ficar e quem sabe trabalhar ali no estabelecimento. 


Aceitou na hora e já se instalou. Limpou o  pequeno quarto, trocou roupas de cama, pois as que havia estavam encardidas. Tratou de pintar as paredes de lilás e na semana seguinte comprou um eletrofone Phillips, que era um pequeno toca-discos portátil que funcionava com energia elétrica e também com pilhas grandes. Carregava com ela alguns discos de boleros e tangos e um pequeno de Roberto Carlos - Amada Amante. Na loja de móveis usados do turco Farid viu uma penteadeira bonita de mogno lustrado. Havia gavetas, um espelho central e dois laterais que se fechavam com a dobradiça. Os entalhes eram coisa de artista. Este móvel deve ter sido de gente rica. O carroceiro entregou a penteadeira que quase não entrou na porta, mas despregaram duas tábuas para alargar a entrada e deu certo. 


Delicadamente ela decorou o quarto e em cima do novo móvel seus perfumes, talco, cremes, pinturas, uma caixinha de música que trouxe com seus pertences. A caixinha quando aberta tocava Por una cabeza enquanto a bonequinha caracterizada de dançarina de tango rodava.


O sargento Sapo que frequentava o respeitável local, quando a viu já veio em sua cabeça os versos de um tango sofrido e não teve dúvidas: Serás minha! Foi paixão à primeira vista. O Romance durou algum tempo. Ninguém sabe de onde ela veio e nada de sua vida. Mas era muito confiante, elegante, boa conversa. Até parecia que tinha estudo.


  • Sargento, sé más o menos de la historia, pero ¿cómo te salvó la vida este perro?

  • A Florência Candelária  me ha encantado desde que la vi. Empezamos a encontrarnos cuando yo estaba fuera del cuartel. Esto continuó durante mucho tiempo. Una tarde llegué e iba a entrar a la habitación. Pero este perro salió de la nada, como si fuera una orden del cielo y gruñó, me agarró del pie, me rasgó los pantalones y no pudo. Y le agradezco por salvarme la vida. Estaba con Dom Florisbal, el marido del que huyó. Allí, en las Corrientes, tiene muchas muertes a sus espaldas. Me matarían como a un cerdo si me pilla con ella. Entonces este perro me advirtió de una muerte anunciada y nos hicimos amigos. Así que lo cuido.

  • Conserve esta amizade! reafirmou o bolicheiro trazendo uma tábua com chinchulin, molleja e riñones para el perro.


Naquela tarde, de sexta-feira 13 de agosto, o  Sargento Sapo e seu cachorro Missioneiro, embarcaram no Chevete 74 atravessaram a cidade e seguiram até ponte da avenida Ibicuí, onde sempre iam. Sapo sentou, numa cadeira de praia embaixo da ponte do trem, onde se formou uma praia de areia,  para passar o tempo entre uma cuia e outra de chimarrão. Enquanto Sapo mateava e lia a Bíblia, solito, alternando entre uma leitura ao sol e um cochilo, o perro deitado de lado, cochilava por um longo tempo antes de voltar para casa e passar a noite no pelego quentinho. 


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