Confissões íntimas sussurradas
Esta semana, compartilhei dois filmes em 360 feitos pelo meu amigo de infância Clóvis Guimarães, de dupla nacionalidade, pois às vezes é erechinense, às vezes é alegretense. Mas ele filmou a belíssima Igreja de São Pelegrino em Caxias do Sul e posso testemunhar sua beleza, pois lá morei durante três anos.
Sempre gostei de parar em frente a São Pelegrino e admirar a imponência de sua fachada, com uma iluminação perfeita que valorizava sua arquitetura. Certa tarde de sábado subi lentamente os degraus da escada que dá acesso à porta principal. Ali já começa o deslumbramento. As portas de bronze, cuja arte retrata a Justiça, a Paz e o Amor, foram criadas por artista italiano e fundidas em Caxias. É admirável.
Ao estar contemplando a beleza e os detalhes da porta central, minha concentração foi quebrada pelo andar de uma vistosa dama que subia a escadaria. Vestia preto, envolta em um ar de mistério. Calça preta, botas para aquecer os pés e as longas pernas do rigoroso frio do inverno caxiense, usava um sobretudo preto com cachecol de lã. Um lenço cobria seu cabelo loiro. Era alta, perto de 1,70 m e acredito que de descendência germânica pelos traços de seu rosto e pelos belos olhos cor de mel esverdeados, que descobri quando ela tirou os óculos escuros. No braço esquerdo uma bolsa discreta, de boa qualidade e na mão direita um rosário. Parou ao meu lado, olhou atentamente desde o campanário até o chão. Tirou as luvas lentamente, suspirou profundamente e entrou na porta principal.
Atravessou a imensa chapa de bronze esculpida. Parou em frente a pia de água benta, molhou o dedo médio e fez o sinal da cruz. Dobrou elegantemente os joelhos em sinal de reverência e entrou na igreja. Seguiu pela lateral direita em direção ao confessionário. Sentou e aguardou alguns segundos. O padre descortinou a abertura e pediu que falasse. Também entrei e sentei em um dos bancos próximo do confessionário tentando ouvir algo. Só consegui ouvir a penitência dada pelo sacerdote: 10 Pai Nosso, 8 Ave Maria e 6 Salve Rainha. Imaginei que a confissão foi bem pesada, algo ocorreu.
Ela saiu do confessionário, segurando o terço, caminhando lentamente e com olhar para o chão em ato de constrição. Sentou duas fileiras a frente mais perto do altar, ajoelhou e cumpriu sua penitência. Em seguida chega uma amiga e senta ao lado. Igualmente elegante, morena, com um sorriso amigável. Um leve cumprimento entre as duas e se mantiveram por alguns segundos em silêncio, até que a que se confessou não se conteve:
Preciso de contar. Não aguento mais esta angústia.
Mas você já confessou e cumpriu sua penitência. Não te aliviou? perguntou a amiga, pegando sua mãe carinhosamente e olhando nos olhos.
Eu de orelha em pé que nem cachorro perdigueiro querendo saber mais do assunto. Me ajoelhei para ficar uns centímetros mais perto e tentar ouvir a conversa. Disfarçava olhando as pinturas que ficavam belíssimas como a luz que passava pelos vitrais laterais em formato vertical pontiagudo intercalado com colunas cada uma com um anjo. Por momentos me perdi no encantamento das pinturas e na réplica da Pietà de Michelangelo que foi um presente do Papa Paulo VI
Me aliviou, me sinto melhor, mas não consigo esquecer. Preciso mais e de novo.Comentou a mulher que se confessou.
Você é louca, sossega ! Até parece guria nova. E também você nunca foi santinha. Tem seu casamento de 30 anos, também teve teus namoricos durante este tempo todo, que eu sei. E teve apenas o sol e lua como testemunhas. Porque só agora isto está te carcomendo internamente?
Não sei te explicar, foi apenas uma vez, na tarde de sexta, mas foi o melhor e mais inesquecível. Contou sussurrando para a amiga. Fez um longo silêncio e ficou olhando o painel O Juizo final, pintado por Aldo Locatelli e Emilio Sessa.
Mas qual a diferença? questionou a confidente.
Foi a única vez que me senti amada.
Te entendo. Mas esquece e vamos tomar um café e voltamos para a missa das cinco da tarde, tentou desconversar e animar a amiga de todas as horas.
Ouvi a confissão íntima sussurrada, rezei um Pai Nosso, uma Ave Maria e sai pela Porta do Amor, que fica do lado esquerdo da igreja.Desci as escadas e parei novamente. Me virei para admirar novamente a imponência de São Pelegrino e tentar esquecer os segredos que neste dia apenas o pároco, Virgem Maria de Pietà, os anjos de Locatelli e eu ouvimos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário