Algum Recado?
Seu Nico, como sempre, levantou às 5 horas daquele domingo frio de agosto. Lavou o rosto, vestiu um casaco de lã e colocou seu melhor lenço no pescoço. Principiou o fogo no fogão à lenha e colocou a chaleira de ferro sobre a chapa. Enquanto a água ia esquentando, pegou a cuia, colocou erva-mate, e um pouco de água para ir cevando devagar. Sentou na caixa de lenha, que ficava na lateral da parede que dava de lado para o fogão, assim podia matear, aproveitar o calor e observar, pela janela o amanhecer que vinha meio com vergonha derretendo a geada e dissipando a cerração.
Água aquecida, encheu uma pequena garrafa térmica que prendia embaixo do braço esquerdo, e na mão direita a cuia de mate que ia sorvendo. Antes de abrir a porta e descer a escada para caminhar pelo pátio, tirava a alpargata e enfiava os pés numa botina mais adequada para quebrar o gelo. Primeira companhia que via era um guaipeca malhado com pelagem preta e branca que ficava embaixo do forno de barro onde era feito o pão. Nunca acreditou em pão de padaria. Gostava de comer o que dava “sustança”. Pão de padaria só tem “formento” e “bromato” insistia.
Após percorrer o terreno, olhando os pés de bergamota, laranja, caqui, jabuticaba, limão, ariticum, canteiro de moranguinhos, colheu duas folhas de cancorosa e um ramo de carqueja. Abriu a garrafa térmica e colocou dentro da água quente para temperar a água do mate.
Naquele domingo de agosto seu Nico, aposentado, após 40 anos de trabalho como marceneiro em uma fábrica de móveis, apenas encostou a porta e desceu a rua de sua casa em direção ao açougue que ficava distante uns 500 metros da casa dele. O vira-latas chamado Benito (em alusão a Mussolini) o acompanhava na caminhada. Ia cumprimentando a vizinhança e quando chegou na frente da casa da dona Ediléia, perguntou: Algum recado? e ela respondeu: Nada seu Nico, quem sabe mais tarde - falou dando esperanças;
Chegou no Açougue do Waldir, um açougueiro típico, de mais ou menos 1m90cm de altura e certamente 130 quilos. Sempre exibindo uma faca prateada de 30 centímetros e fio de dar inveja a qualquer churrasqueiro. Cabo feito de chifre de boi. Nunca largava a faca que usava para os cortes que os clientes pediam. No ombro pendurava sempre um pano que deveria ser branco para enxugar as mãos e limpar o balcão a cada atendimento e também para espantar as moscas que sempre aparecem quando se mexe com carne.
Buenas Waldir!
Bom dia Seu Nico.
Tem ovelha?
Tem sim, chegou ontem e está bem fresquinha.
Me vê um quarto de ovelha, dois quilos de camponesa, uma alcatra com osso, meio quilo de batatas e umas quatro cebolas para assar, das graúdas- recomendou o cliente.
Tá bom Tio Nico. Mas a conta vai ficar alta. Alertou o açougueiro.
Depois eu acerto é que hoje, você sabe, né.
Pois é, a piazada vem passar o dia com o senhor?
Espero, mas ninguém me confirmou nada ainda.
Está aqui Seu Nico Vai precisar de carvão?
Não, eu tenho bastante lenha, vou assar direto no fogo.
Com a garrafa térmica embaixo do braço esquerdo, a cuia na mão direita e duas sacolas uma em cada mão Seu Nico seguiu para casa, com o Benito ao seu lado. Foram a trotezito e passando na frente da casa da dona Ediléia, a única a ter telefone nas redondezas, apenas olhou para ela e a vizinha balançou a cabeça. Nada! Nenhuma novidade.
Chegou em casa, empurrou a porta com o pé, já que nem havia trancado, pois voltaria rápido. Colocou tudo em cima da mesa. Descascou as batatas, picou e colocou na panela em cima do fogão a lenha. esperou cozinhar, escorreu e já bateu os ovos para fazer a maionese. Salada pronta colocou na Frigidaire.
Agora já está na hora de prender fogo na lenha até formar o braseiro e colocar a carne mais perto do meio-dia. Separou a lenha mais seca que ficava no porão e com um risco de fósforo já pegava fogo, ao contrário do caminhão Chevrolet da fábrica de móveis que ele trabalhou por 40 anos, nunca pegava. Sempre tinham de empurrar e o patrão muquirana, não queria gastar num caminhão novo. Seu Nico era bom fazedor de móveis, começou no tempo que faziam móveis em madeira de lei, nada de laminados. Dizem que era um artista até com formão para os entalhes na decoração de camas, mesas, guarda-roupas e penteadeiras que encantavam as damas da alta sociedade cujos maridos podiam pagar por tão raro, bonito e caro mobiliário.
Seu Nico era um senhor que vivia sozinho há anos, desde que a mulher o deixou com três filhos, após conhecer um sujeito de parque de diversões que veio à cidade. Para decepção , o sujeito sem eira nem beira, como ele se referia, nem artista era. Vendia Maçã do Amor, no parque, gauderiando, de cidade em cidade. Mas como diz a música de Lupicínio Rodrigues “mulher tem asas na ponta do coração”. Com três filhos pequenos continuou a criá-los. Um estudou para ser engenheiro mecânico e estava bem trabalhando em uma fábrica de automóveis em São Paulo. O do meio estudou para ser engenheiro eletricista e foi para o interior de Goiás fazer barragens e a menor, a Rosimeri Luciana se formou professora de física e matemática, dava aulas na rede estadual lá pelos lados de Sananduva.
Lá perto das 11 horas da manhã fogo já no ponto de braseiro, seu Nico espetou o quarto da ovelha, jogou sal grosso por cima e colocou sobre o brasileiro no alto para assar devagar. Já aproveitou pra esperar as cebolas, linguiças e a alcatra.
Assim que eu gosto Benito. Fartura na mesa! resmungou seu Nico para o vira-latas que estava na volta dos pés do dono estimulado pelo cheiro da graxa pingando no braseiro.
Sentado perto do fogo, virava os espetos para assar por igual, trocou o mate por uma garrafa de Serramalte vinda lá de Getúlio Vargas. Encheu um copo e bebeu com vontade em um gole só. O domingo estava frio, em torno de 10 graus, mas com sol claro e aproveitou para entornar um gole de conhaque de alcatrão para esquentar as costelas.
Benito, cuida da carne que já volto. - ordenou ao companheiro quando novamente foi até a casa da vizinha. Olhou lá de frente da calçada e ela balançou a cabeça de novo.
Voltou para casa e sentou num cepo de angico que mantinha perto da churrasqueira. Bebeu mais um copo de Serramalte, pegou a prateada e cortou o garrão do pernil, há quem diga que é a parte mais saborosa, o corte do patrão, e deu para Benito.
Benito, você também é meu filho querido. Mas eu só queria um recado, que dissessem que estão todos bem.
Benito olhou para seu Nico, lambeu sua mão e com um olhar profundo nada precisou dizer. Estava feliz comemorando o dia dos Pais.
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