sábado, 30 de abril de 2022

O vizinho triste



O vizinho triste




O sujeito era bem apessoado, roupas boas, sapatos lustrados, cabelo aparado e sempre bem apresentável. Nunca soube o que fazia, mas era um cara emburrado, mal educado e nunca cumprimentava ninguém no prédio. Se tivesse que dividir os 12 andares de elevador, fechava a cara e ia até o alto ou até o térreo calado, sem levantar o olhar.




Ela uma mulher vistosa, bonita, cabelos claros, pele bronzeada pelas horas de sol. Corpo escultural e roupas sensuais que chamavam a atenção. Pela beleza deveria ter vindo lá dos lados de Bagé ou Alegrete. Formavam um casal bonito, se andassem juntos. Eram um casal, marido e mulher.




Eu e mais dois colegas morávamos no apartamento ao lado e de vez em quando ouvíamos gritos, bater de móveis, cadeiras arrastando, enfim coisas de alguma discussão do casal. Mas como diz o ditado em briga de marido e mulher não se mete a colher.




Num feriado de 1º de maio de 1985, há 37 anos, a barulheira começou cedo. Um colega, madrugador também, deu a sugestão de a gente usar um copo colado na parede para ouvir a conversa. A peleia parecia esquentar.




Peguei já uma caneca enorme para ouvir melhor. Fomos encostando na parede e seguindo o pequeno apartamento popular de paredes finas e ficamos ouvindo a conversaiada.




Você é ingrata, só queria sair daquela vidinha e casar. Me sinto enganado.


Seu trouxa você que é bobalhão. Não viu isto antes? devolveu ela.


Você sabia que eu sempre te amei e sempre te quis. Porque faz isso comigo?


Deixa de ser frouxo. Vá lavar a louça que vou sair.




Alguém empurra um móvel com força e ouvimos um barulhão de cacos de louça e vidros quebrando. Pensamos, agora vai dar morte. Se fez um silêncio e em seguida um barulho como se fosse alguém varrendo e juntando os cacos.




Onde você vai Dalva Cristina?


Não te interessa. Não tenho hora para voltar.


Você acha que vou continuar aturando você se encontrando com aquele velho de orelha peluda? Ou com aquele que parece uma múmia uruguaia? Ou você acha que eu não sei do Porco Gordo bizarro, aquele que você andava com ele e que agora está toda faceira por ter encontrado de novo?


Se sabe porque pergunta onde vou? Provou a mulher.


Te perdôo porque ainda te amo. Gosto de te beijar, de te tocar, de te abraçar, mas você nem deixa eu chegar perto? Você me rejeita. Não posso nem segurar na sua mão.


Pára de encheção, de frescura. Tchau e não sei que horas volto. Vá ver um jogo do Xavante e me deixa em paz.




Escutamos a prosa toda e ficamos bem quietinhos. Neste altura, já nem achávamos mais o sujeito antipático, estávamos com pena dele. A bruxa era ela que sorria e nos tratava bem.




E como era nosso costume lá pelo final da tarde antes de ir para a aula, nos reuníamos alguns colegas para uma roda de chimarrão. Nos finais de semana alguém sempre trazia uma cachacinha, pipoca. um bolo de milho para acompanhar a prosa e passar algumas horas.




Alguns metros de distância avistei o vizinho, protagonista da nossa espionagem. Cabisbaixo, passou pelo nosso grupo fez um leve gesto com a cabeça cumprimentando a todos e colocou o primeiro pé para dentro da porta do prédio.

Num ímpeto o chamei:




-Vizinho, aceita uma cuia?



Ele me olhou, parou e voltou.

Moço, posso falar com você um pouco?




Me amedrontei porque somos vizinhos de lado e dava para ouvir tudo. Levantei do portal e fui ouvi-lo.




Sei que você ouviu a discussão lá em casa. gostaria que você mantivesse discrição com os demais, enfim, é algo que me incomoda. Solicitou.



Fiquei meio sem jeito mas garanti a ele que nada contaria e falei:

Vizinho, como conselho de alguém mais jovem e sem muita vivência ainda. O que o senhor vive não vale a pena.


Mas ainda gosto dela, ele argumentou


Não implore por carinho, não implore por amor. Se não é natural não é verdadeiro e tem muitas pessoas por aí bem melhores. O senhor não merece se desfazer tanto desta maneira. Não permita isso com o senhor.


Obrigado moço e vou aceitar uma cuia de mate.




Peguei a cuia da mão de um colega que terminou, servi dei ao vizinho. Sorveu o amargo, aceitou uma balinha de menta e uma bicada na cachaça de Santo Antônio da Patrulha. Ainda dei um pedaço da rapadura, também de Santo Antônio, que é a melhor rapadura do mundo.

Vizinho esta rapadura é para adoçar suas palavras e sua alma e não esqueça Não mendigue carinho, amor, amizade!




Nos dias que se seguiram ele passou a nos cumprimentar e às vezes até parava. Anos depois o reconheci em umas edições da Fenadoce, em Pelotas. Estava com semblante feliz, seguro e bem acompanhado com alguém que transparecia gostar da companhia do meu ex-vizinho.




Junho terá nova edição da Fenadoce, onde se encontram os melhores doces do mundo. Quem sabe o ex-vizinho esteja por lá.


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