domingo, 22 de maio de 2022

A RIFA

 A RIFA



Acomodado na última mesa de canto do bar, estava o Adroaldo Roberto, um conhecido. Estava com cara de emburrado, não queria ser importunado. O dono do boteco, que ficava lá na Vila do Cachorro Sentado, em alusão a várias casinhas “meia-água”,  até fez um sinal e cochichou nem chegue perto. Deu curto circuito no chifre. Tá sofrendo.


Em cima da mesa de metal, dessas que usam em bares com quatro cadeiras e estampa de uma marca  de cerveja, estava ele com um monte de papel de embrulhar pão. Escrevia números e rasgava em pedacinhos. Colocava tudo em um baleiro, igual aos que ficam nos balcões dos bares com pirulitos, balas, chicletes, gomas e todas doçuras para estragar os dentes da piazada.


Tinha com ele um toca-fitas e gravador cassete, que tocava sem parar as músicas  do Lindomar Castilhos. Era uma dor de corno só: Nós Somos Dois Sem Vergonhas, Camas Separadas, Muralhas da Solidão, Coração Vagabundo, Ébrio de Amor, Você é Doida Demais e Eu vou Rifar Meu Coração./O som não era alto porque aqueles aparelhinhos tinham pouca potência, mas dava para levar a qualquer lugar.


Observei algum tempo, pedi torresmo, laranjinha Balvedi e fiquei por ali observando o Adroaldo. O Lindomar Castilhos estava rouco de tanto tocar a fita. Ele escrevia e rasgava papelzinho, dobrava e colocava no baleiro.


Lá pelas tantas cheguei perto e puxei conversa:


  • Que tá inventando aí? perguntei tentando quebrar o gelo e matar a curiosidade.

  • Não te interessa e você deve ter culpa também. 

  • Deixa de ser tanso, bicho véio, me fala. Adroaldo ficou em silêncio, respirou profundamente, deu um suspiro  de dar dó. Entornou mais um “mercedinho” de purinha e virou a fita. Apertou na tecla play e aumentou o volume.

O som rouco do toca-fitas cassete Nacional era ruim e a fita gasta mas  ele não queria saber. Botou o volume no mais alto e se recostou na cadeira. Era ainda Lindomar Castilhos cantando “Eu Vou Rifar Meu Coração”


  • É isso que vou fazer! Já escrevi os números, estão todos no baleiro. Vou rifar meu coração para quem me der mais carinho.


Ouvi a prosa do Adroaldo e sai. Dias se seguiram e a turma toda durante a semana pegou número da rifa, mais para diversão. Vendeu os números a um cruzeiro. E marcou o sorteio para o terceiro domingo de maio às 11h ali mesmo no Bar Gambá Enfastiado.


Era uma manhã bonita, clara, sol radiante,mas a temperatura estava por volta dos 8 graus. Os amigos, parceiros de boteco apareceram. Veio até o João Cuiudo com a gaita e puxou  sucesso de Teixeirinha, Quem é Você agora , composta quando Mary Terezinha o deixou.


Estava na hora do sorteio. O Velho Tatu Mulita, dono do Gambá Enfastiado abriu a tampa do baleiro e anunciou o início do sorteio.


  • Vamos começar o sorteio do “coração” do nosso amigo Adroaldo Roberto  que recentemente sofreu grande desilusão amorosa. 


Adroaldo trouxe o toca-fitas cassete e apertou play, novamente a música Eu Vou Rifar meu Coração, que ficou como fundo musical. Quem passava na frente do Gambá Enfastiado olhava, parava e alguns ficaram. Enquanto isso, o bodegueiro Tatu Mulita meteu a mão que mais parecia um remo de tão grande. Pegou um papelzinho e todos ficaram em silêncio. Só se ouvia o fundo musical 

Eu vou rifar meu coração

Vou fazer leilão

Vou vendê-lo a alguém

Não vou deixar o coitadinho

Viver sempre sem carinho

Ficar sempre sem ninguém


Todo mundo em suspense até que sai o número sorteado: 


  • Vamos ver quem ganhou. Anuncia o Mulita. É o número 6, para quem não sabe é cabra no jogo do bicho. Em seguida foram ver a lista dos compradores da rifa. E na lista correspondente ao número estava o Miguelão, 140 quilos, 1m90, mecânico de caminhão num posto de molas na Transbrasiliana, do outro lado da Vila do Cachorro Sentado. Miguelão dava medo só no caminhar do vivente e sempre andava com uma prateada na cintura.


Todo mundo ficou em silêncio. Foram saindo aos poucos. Tatu Mulita entregou os frangos assados das encomendas e desceu a porta de ferro de enrolar. 


Adroaldo recobrou a consciência, nunca mais se falou no assunto e ninguém foi revelar o resultado do sorteio ao Miguelão.


Adroaldo desistiu de rifar o coração. Está namorando a filha do dono do Gambá Enfastiado e a fita cassete que enrolou no cabeçote ficou lá. Aposentou até o toca-fitas. Comprou um walkman. Assim ninguém sabe o que houve e nunca mais ninguém tocou no assunto. Anos depois casou e se mudou para Viadutos, na esperança de que ninguém lembre quem foi o ganhador do sorteio.


Acho também que nunca mais ouviu “Eu Vou Rifar Meu Coração”.


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