A RIFA
Acomodado na última mesa de canto do bar, estava o Adroaldo Roberto, um conhecido. Estava com cara de emburrado, não queria ser importunado. O dono do boteco, que ficava lá na Vila do Cachorro Sentado, em alusão a várias casinhas “meia-água”, até fez um sinal e cochichou nem chegue perto. Deu curto circuito no chifre. Tá sofrendo.
Em cima da mesa de metal, dessas que usam em bares com quatro cadeiras e estampa de uma marca de cerveja, estava ele com um monte de papel de embrulhar pão. Escrevia números e rasgava em pedacinhos. Colocava tudo em um baleiro, igual aos que ficam nos balcões dos bares com pirulitos, balas, chicletes, gomas e todas doçuras para estragar os dentes da piazada.
Tinha com ele um toca-fitas e gravador cassete, que tocava sem parar as músicas do Lindomar Castilhos. Era uma dor de corno só: Nós Somos Dois Sem Vergonhas, Camas Separadas, Muralhas da Solidão, Coração Vagabundo, Ébrio de Amor, Você é Doida Demais e Eu vou Rifar Meu Coração./O som não era alto porque aqueles aparelhinhos tinham pouca potência, mas dava para levar a qualquer lugar.
Observei algum tempo, pedi torresmo, laranjinha Balvedi e fiquei por ali observando o Adroaldo. O Lindomar Castilhos estava rouco de tanto tocar a fita. Ele escrevia e rasgava papelzinho, dobrava e colocava no baleiro.
Lá pelas tantas cheguei perto e puxei conversa:
Que tá inventando aí? perguntei tentando quebrar o gelo e matar a curiosidade.
Não te interessa e você deve ter culpa também.
Deixa de ser tanso, bicho véio, me fala. Adroaldo ficou em silêncio, respirou profundamente, deu um suspiro de dar dó. Entornou mais um “mercedinho” de purinha e virou a fita. Apertou na tecla play e aumentou o volume.
O som rouco do toca-fitas cassete Nacional era ruim e a fita gasta mas ele não queria saber. Botou o volume no mais alto e se recostou na cadeira. Era ainda Lindomar Castilhos cantando “Eu Vou Rifar Meu Coração”
É isso que vou fazer! Já escrevi os números, estão todos no baleiro. Vou rifar meu coração para quem me der mais carinho.
Ouvi a prosa do Adroaldo e sai. Dias se seguiram e a turma toda durante a semana pegou número da rifa, mais para diversão. Vendeu os números a um cruzeiro. E marcou o sorteio para o terceiro domingo de maio às 11h ali mesmo no Bar Gambá Enfastiado.
Era uma manhã bonita, clara, sol radiante,mas a temperatura estava por volta dos 8 graus. Os amigos, parceiros de boteco apareceram. Veio até o João Cuiudo com a gaita e puxou sucesso de Teixeirinha, Quem é Você agora , composta quando Mary Terezinha o deixou.
Estava na hora do sorteio. O Velho Tatu Mulita, dono do Gambá Enfastiado abriu a tampa do baleiro e anunciou o início do sorteio.
Vamos começar o sorteio do “coração” do nosso amigo Adroaldo Roberto que recentemente sofreu grande desilusão amorosa.
Adroaldo trouxe o toca-fitas cassete e apertou play, novamente a música Eu Vou Rifar meu Coração, que ficou como fundo musical. Quem passava na frente do Gambá Enfastiado olhava, parava e alguns ficaram. Enquanto isso, o bodegueiro Tatu Mulita meteu a mão que mais parecia um remo de tão grande. Pegou um papelzinho e todos ficaram em silêncio. Só se ouvia o fundo musical
Eu vou rifar meu coração
Vou fazer leilão
Vou vendê-lo a alguém
Não vou deixar o coitadinho
Viver sempre sem carinho
Ficar sempre sem ninguém
Todo mundo em suspense até que sai o número sorteado:
Vamos ver quem ganhou. Anuncia o Mulita. É o número 6, para quem não sabe é cabra no jogo do bicho. Em seguida foram ver a lista dos compradores da rifa. E na lista correspondente ao número estava o Miguelão, 140 quilos, 1m90, mecânico de caminhão num posto de molas na Transbrasiliana, do outro lado da Vila do Cachorro Sentado. Miguelão dava medo só no caminhar do vivente e sempre andava com uma prateada na cintura.
Todo mundo ficou em silêncio. Foram saindo aos poucos. Tatu Mulita entregou os frangos assados das encomendas e desceu a porta de ferro de enrolar.
Adroaldo recobrou a consciência, nunca mais se falou no assunto e ninguém foi revelar o resultado do sorteio ao Miguelão.
Adroaldo desistiu de rifar o coração. Está namorando a filha do dono do Gambá Enfastiado e a fita cassete que enrolou no cabeçote ficou lá. Aposentou até o toca-fitas. Comprou um walkman. Assim ninguém sabe o que houve e nunca mais ninguém tocou no assunto. Anos depois casou e se mudou para Viadutos, na esperança de que ninguém lembre quem foi o ganhador do sorteio.
Acho também que nunca mais ouviu “Eu Vou Rifar Meu Coração”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário