sábado, 27 de julho de 2024

A RUA MAIS SEGURA DO MUNDO

Nos anos 70, como em várias localidades, a vida era tranquila e com certeza tínhamos a sensação de segurança. As portas ficavam abertas e era um entra e sai de vizinhança, amigos e parentagem. 


Poucas casas tinham aparelhos de televisão. Até então as novelas eram ao pé do ouvido escutando as rádios. Com a chegada da TV surgiu o “televizinho”. E na hora da novela das oito corriam para quem tinha o aparelho. 


Mesmo com esta sensação de segurança, alguns contrataram os guarda-noturnos, pagando uma pequena taxa. Ele fazia a ronda e apitava quando passava na frente da casa dos “assinantes”.


E nossa rua era a mais segura do mundo porque uma vizinha namoradeira, mantinha conversas, mesmo nas noites frias com o tal guarda noturno que não falhava. O sinal era o apito do guarda para avisar que havia chegado. Ela ouvia e já saia ao encontro do guardião do patrimônio e da moral. 


Todos se amontoavam na cozinha, ou na sala em volta da televisão, com papel celofane colorido na tela para proteger as vistas, não se ouvia um zumbido, a atenção era total na novela Irmãos Coragem, uma das mais longas com 328 capítulos. Mas as “véia” não perdiam um episódio.


Certa noite, passava um capítulo tenso envolvendo João Coragem (Tarcísio Meira), Lara (Glória Menezes) e Ritinha (Regina Duarte) e todos de ouvido em pé e olhos colados na tela. Nem respiravam. E o tal guarda noturno principiou a ronda mais cedo e começou a apitar, e repetia silvos longos, curtos, imitava passarinho com o apito. Aquilo irritou a velharada e o guardião patrimonial não iria parar até que a tal vizinha não fosse ao encontro dele. Eu era pequeno e aquilo também estava me incomodando. Levantei, dei volta ao redor do fogareiro de ferro com braseiro que ficava no centro da sala e fui até a porta da frente. Senti o frio gelado que me engolfou. Dalí da porta mesmo gritei para o apitador:


- Moço, vem apitar mais tarde, agora a Bete está vendo novela e não vai sair! 


Ele guardou o apito, se tapou com o capote e apertou o passo. Foi fazer a ronda mais adiante. Assim aprendeu que na hora da novela, ele não deveria apitar na frente da nossa casa.


Essa tal de Bete controlava a segurança pública da rua mais segura do mundo. Nunca ninguém teve registro de furto naquela quadra.



quarta-feira, 24 de julho de 2024

O BEIJO QUE ESPEROU 40 ANOS

Naquela noite de sexta-feira Isaura não pregou os olhos. Também não conseguiu ficar deitada na cama e tirou para o lado o cobertor de lã, pois lhe subia um calorão, estava ansiosa, esperando o  amanhecer. Logo pouco mais das oito horas da manhã de sábado ela deveria estar na rodoviária. Afinal, ela veria de novo aquele moço por quem teve um sentimento especial, apesar de vê-lo por instantes e ter ficado perto pouco tempo.


Lá pelas 5 horas da madrugada foi até a janela da frente, abriu as cortinas e uma fresta da janela. Lá fora o minuano cortava o tempo, e a cerração era como uma muralha que separava quatro décadas de espera e de desejo por um beijo que seria ardente. Sonhava com isso desde quando conheceu Eduardoi em uma discoteca famosa dos anos 80. Ensaiaram uma dança bem pertinhos. Ela vestia uma blusinha de malha e nada usava por baixo, afinal a beleza da juventude a deixava mais atraente. Ele sentiu seu belo corpo junto ao dele. Vestidinho curto a deixava juvenil. Dançaram um pouco, mas os olhos fiscalizadores do irmão não permitiram ir além. Como diriam popularmente  “deu um faiscamento que resultou num fogaréu que nem toda água do rio Uruguai poderia apagar”. Houve química, ou match como falam os jovens de hoje.


Ele voltou algumas vezes na danceteria para ver se a encontrava. Mas ela só podia ir com o irmão na soirèe das tardes de domingo. Nunca mais se viram. Suas vidas seguiram distantes, diferentes e com destinos parecidos. 


Anos se passaram até se encontrarem em redes sociais. Combinaram de se ver. Foram meses de espera até que houvesse uma data que os dois pudessem marcar um encontro para colocar o papo em dia, tomar um café, enfim,saber o que cada um fez em quatro décadas. A contagem regressiva, dia a dia aumentava a ansiedade de Isaura e pensava em o que poderia fazer para que desta vez o beijasse. Mas e se ele estivesse diferente, muito mais velho e sem o encanto daquele sorriso que a fez se apaixonar?


Naquele sábado às 7 horas ela já estava arrumada. Roupas quentes e pesadas, já que a manhã iniciou com cerração, fria mas abriria sol mais tarde. Foi até a rodoviária, pois o ônibus chegaria às 8h40min. Esperou na plataforma, caminhava de um lado para outro, perguntava se havia atraso nos horários. Foi informada que as estradas do Rio Grande do Sul estavam muito destruídas devido a grande enchente, mas que o ônibus chegaria com meia hora de atraso. A espera interminável foi de mais de uma hora e quando viu o imenso double deck entrando na plataforma de desembarque, Isaura tratou de chegar mais perto. Queria ser a primeira na fila de espera. Os passageiros começaram a descer  e seu sentimento era de apreensão, alegria, coração acelerado, preocupação, tudo misturado. 


Será que o reconheceria? É igual as fotos? Quando o viu, ela sabia quem era e os 40 anos de distanciamento desapareceram. Nada falou, Chegou perto abraçou-o bem forte com todo o carinho do mundo e beijaram-se demoradamente sob os olhares curiosos dos outros passageiros que esperam suas bagagens.


Ela olhou nos olhos de Eduardo e com um sorriso falou:


  • Queria tanto que tivesse me beijado naquela vez. Ela confessou seu maior desejo.


Ele nada falou, correspondeu aos carinhos de Isaura e seguiram para recuperar 40 anos de espera por carícias e beijos. 


E foi um beijo intenso e doce, como os melhores doces do Rio Grande como ambrosia, figo em calda e Dulce de Leche do Uruguai. E o minuano continuou soprando forte, cortando os campos e obrigando o casal a continuar abraçados.



sábado, 13 de julho de 2024

A FOGUEIRA SANTA QUE QUEIMA OS PECADOS E A SERPENTE QUE PUNE AS NAMORADEIRAS

Eu era bem pequeno, e naquela tarde de sábado ouvimos uma fanfarra ao longe e corremos para  a rua. Toda piazada ficou “bombeando” um grupo vestido de vermelho, com bandeiras e tocando tambor. Era a tal TFP-Tradição Família e Propriedade  fazendo uma marcha pelas ruas de Erechim. Não entendíamos nada daquilo.


Mais tarde naquela noite haveria uma cura milagrosa na Praça da Bandeira. Mistura de charlatanismo com diversão. Novamente minha irmã Pepita e meu cunhado Pedro me enfeitaram, e fiquei mais bonito que criança em dia de batizado, pois ainda não tinham filhos e me levavam passear. Estava todo enfatiotado para ir ao Café Grazziotin, depois um passeio para ver as vitrines das lojas e por fim na praça que lotava de curiosos. Vizinhança toda ia, afinal na época, aparelhos de TV eram raros nas residências e atrações como essas era sucesso de público.


Lá pelas tantas, o dito pregador prometeu que iria curar os fumantes e bebedores. Os desejosos de parar de fumar deveriam jogar seus cigarros e garrafas de bebidas na fogueira santa. Rapidamente Pedro tirou a carteira de Hudson com ponteira, de embalagem verde e jogou no fogo. Estava convicto de que estava curado e que nunca mais fumaria. Alí acabaria o desejo por um cigarro.


Outros foram chamados para queimar o pecado escrito nas revistas e jornaism que corrompiam e desencabeçavam os jovens. Alguns jogavam jornais, revistas Cruzeiro, e queimaram as escrituras do pecado como as revistas Penthouse e Playboy, além das raras revistinhas suecas e os desenhos de Zéfiro. E a fogueira aumentava, e dê-lhe discurso e reza. Uns 10 minutos depois Pedro estava arrependido do ato em busca da cura olhou para minha mãe Lili e lascou:


  • Sogra, me dá um cigarro. A mãe que só fumava LS King Size, olhou para ele e devolveu:


  • Vai lá na fogueira e pegue de volta teu maço. E deu uma risada do ato.


Mas o evento na praça tinha mais uma novidade. O tal pregador tinha uma caixa que anunciava ter uma cobra que iria revelar verdades.


  • Aqui tem uma mulher que é muito namoradeira. Pecadora, anda com homens casados e tem muitos namorados. Vou soltar a cobra e ela vai apontar quem é. Anunciou o paramentado.


E andava com a caixa com a cobra dentro. Caminhava pelo círculo entre o fogo que queimava cigarros, bebidas e publicações e as pessoas que faziam a volta observando e atirando no fogaréu suas pecaminações.


E veio se aproximando de nós com a ameaçadora caixa com a cobra dentro. Neste momento,  eu com talvez 5 ou 6 anos, peguei na mão de uma vizinha e falei bem alto ali na praça:


  • Bete, Bete, vamos embora. Bete,  a cobra vai te pegar. Vamos! 


Só restou todos caírem na gargalhada e a vizinha Bete que era namoradeira ficou fazendo cara de paisagem como se não fosse com ela.  Me larga guri! Dizia se afastando tentando se  desvencilhar de mim. Depois dessa, saímos da praça e fomos para casa. Bete não ficou para ver o teste da cobra. Veio junto para casa e com passos rapidinhos. Vai que a cobra segue….


sábado, 6 de julho de 2024

O DIA QUANDO EU QUASE FUI TOUREIRO

 Eu tinha uns 5 ou 6 anos, talvez até menos, mas era valente uma barbaridade. De vez em quando chegava em Erechim circos, parques e apresentações de carros que faziam acrobacias e manobras no centro, algo impensável hoje em dia pela insegurança. E certa feita apareceu uma dessas companhias de tourada. O circo foi montado no Estádio da Montanha, que era do Ypiranga, antes de construírem o Colosso da Lagoa.


Pela tardinha, minha irmã Pepita e meu cunhado Pedro me pilcharam bem lindo como se fosse para um casamento. Mas nada de festa era para ver a tourada. Na ida a pezito, lá de casa até o estádio dava uns 2 quilômetros. Fui garganteando que ia montar no touro, dá-lhe espora e mango e um soco no focinho. Nem precisava pano vermelho, eu me virava com minha japona acolchoada.


Chegamos no estádio, o campo do Ypiranga era apenas um aramado que não segurava nem o minuano, muito menos um touro de ventas arreganhadas e bufando. Estavam juntos alguns vizinhos e eu ali observando na tela a movimentação dos palhaços que entretiam o pessoal, o cheiro de bosta de boi vinha de longe. Pessoal todo arrumado, afinal era um evento de entretenimento na cidade e o campo estava cheio. 


Lá pelas tantas o locutor anuncia o primeiro toureiro a lutar pela vida contra o famoso toureiro vindo da Espanha. É claro que era tudo armado como eram as lutas livres do Ted Boy Marino, Fantomas, Verdugo, Rasputim,Tigre Paraguaio e outros.


O clima era tenso, todos chegaram perto do aramado para ver melhor e eu com meio metro de altura também me grudei na cerca e fiquei de olho no movimento e nos alto falantes anunciaram:


  • Povo de Erechim sejam bem vindos a Grande Arena de Toros, direto da Espanha. E aqui o grande toureiro campeão da La Plaza de Toros Las Ventas de Madrid, Don Victor de La Puebla. e o povaréu aplaudiu. Agora aplaudam o touro Criminoso, campeão da Espanha, com 546 quilos de força e raiva que já abateu valentes toureiros que o desafiaram. O povo aplaudiu mais do que o toureiro.


Don Victor de La Puebla já estava no centro do gramado, bem no círculo onde começam os jogos de futebol. Quando abriram o partidor e o Criminoso saiu bufando com ventas abertas em direção ao toureiro, ele se contorceu, flamulou o pano vermelho e o touro passou reto em direção ao alambrado onde eu estava. Ali vi a alma descolar do corpo e senti o bafo do criminoso. Dei um salto de um pulo só e me agarrei no pescoço do meu cunhado Pedro e larguei essa:


  • Padrinho me dá um cigarro que estou nervoso! Só restou a eles darem risada e eu mais sério que nenê cagado esperei o toureiro florear a espada e fincar no cupim do bicho  abrindo uma sangueira pelo lombo do animal.


Ali naquela noite de sábado acabou minha vontade de ser toureiro. Touro agora só em forma de bife. Que vengan los toros. Olé!




quarta-feira, 3 de julho de 2024

ATRAÇÃO INCONTROLÁVEL




Costumeiramente vou diariamente ao supermercado. Aproveito para fazer uma boa caminhada em tardes de sol, a trotezito. Geralmente aproveito para tomar um café mocaccino, nome este derivado porque este café foi desenvolvido no Iêmen, cidade de Mocha, mas não é este o assunto de minha atração incontrolável dentro do supermercado.


Percorri os corredores, coloquei na cestinha os produtos faltantes de meu interesse e segui para o caixa destinado exclusivamente para idosos. Três pessoas na minha frente esperavam o atendimento e a moça do caixa muito agradável, conversava com os velhinhos e com as velhinhas para entretê-los durante o atendimento. Aí se deu o acontecido. Senti uma atração irresistível ao vê-la, uma  vontade descontrolada de chegar mais perto, pegar com a mão, tocar e sentir. Por alguns minutos pensei em várias estratégias para me aproximar, fazer uma abordagem segura e finalmente conseguir meu intento. 


Afinal é um desejo de 4 anos, sem nunca ter chegado perto. Fiquei pensando também, como pode este sujeito de poucos brilhos possuí-la e eu um gorducho estudado com bom emprego e nunca consegui nem chegar perto.


Aí veio minha intenção fatal quando a moça do caixa, me perguntou:


  • O senhor tem a…..Iria perguntar se tinha o aplicativo do supermercado para pontuação. Rapidamente respondi que não e já me encorajei para o golpe fatal.


  • Moça, será que…..E vi meu desejo se esvair definitivamente quando ela guardou a nota de 200 reais na gaveta do caixa. Desde que foi lançada em 2020 nunca vi uma, numa peguei nas mãos. A primeira vez que vi uma foi ontem, quando um velhinho mais feio que eu pagou com dinheiro as compras e ali estava o Lobo-guará rindo de mim.


Peguei as duas sacolas de compras, pagos com cartão de crédito e fui para casa pisando firme, emburrado. Como pode. Depois de quatro anos e ter estado tão pertinho…