sábado, 29 de maio de 2021

Caçadores de Velório

 Caçadores de Velório


Já ouvimos falar dos Caçadores da Arca Perdida, Caçadores das Galáxias, Caçadores do Santo Graal, Caçadores de Emoção, Caçadores de Mentes, Caçadores de Recompensas. Tudo isto já foi eternizado por Hollywood em filmes, muitos de sucesso de público e crítica.


É que ninguém pensou em fazer uma produção sobre os Caçadores de Velórios. Isto mesmo. Lá perto de casa tinha uns quatro compadres que não podiam perder um velório. Era um evento social, diversão, passatempo, reencontro de amigos, conversa, chimarrão e era comum panelões de “brodo” em noites frias. Café a noite toda para velar o “santo” .Muitas vezes tinha roda de violão, cantoria, cachaça e vinho. E o morto? Solito no más, na sala,  já que a diversão estava melhor lá no lado da casa.


Semana passada, falando com o tio Nelson Guimarães, comentei com ele, que os compadres não podiam ver um velório. Escutavam a Rádio Erechim para ver os avisos da Funerária Passuelo. Era mais ou menos assim que o locutor anunciava : “É com pesar que comunicamos o falecimento do fulano de tal, conhecido como cicrano. O Féretro está sendo velado em tal lugar e o corpo segue para missa de corpo presente tal hora. Depois será sepultado no cemitério municipal Haverá ônibus de ida e volta”.  Sabedores do evento, estava pronta a caça ao velório. Como não havia telefones, era fácil caminhar até a casa ao lado ou próxima  para avisar os compadres da novidade. Às vezes a piazada levava o recado.


Eram quatro cavaleiros do Apocalipse na minha quadra: meu pai o Fábio, o compadre Nelson, o Chiodi que morava ao lado e o Abrahão Aoach, da rua de cima. Abrahão era um judeu bem de vida, com duas lojas perto da rodoviária. Sempre de carro novo. Todo ano ia na Ford e pegava um Corcel estalando de bonito. Lembro de um modelo 75  branco com listras pretas no capô e laterais. Um luxo.


Numa tarde de sábado o Abrahão encontrou o Nelson Guimarães na rua Liberato Salzano, perto da escadaria e o convidou para um velório e já deu o recado. - Avisa o Lima também.


Guimarães queria mais detalhes de quem era o morto, afinal não tinha dado na rádio. Não ouviu nem o Jovino e nem o Tramotina falar nada. Na outra rádio o Jerônimo Nunes não irradiou também. Quem seria?


  • Mas Abrahão quem é o falecido? É conhecido nosso?

  • Não! Nem conheço, mas vamos lá quero aproveitar que tem bastante gente para vender um “fogon” a lenha usado.


Só restou ao Nelson dar uma risada. O judeu queria caçar um velório, de gente que nem conhecia para vender um fogão usado. Vai que alguém lá precisa. 


Quer saber se foram?


Foram sim, afinal não tinha muito o que fazer num final de semana em Erechim. Velório era um acontecimento e não vão me acreditar, o Abrahão vendeu o fogão. Veio para casa com uns pilas no bolso. 


Bom final de semana e escutem a rádio para ver se tem algum anúncio fúnebre. Numa noite fria certamente vão servir uma sopa bem quentinha e um brodo com caldo grosso. Se tiver algum com boa concorrência, café passado na hora e um caldo de galinha bem forte e quente,me avisem. Vai esfriar.


domingo, 23 de maio de 2021

Nelson e o Simca Jangada

 Nelson e o Simca Jangada



Esta semana tive uma ótima surpresa. Quarta-feira de noite recebo uma ligação com DDD 051, da grande de Porto Alegre. Inicialmente, pensei não atender porque ligação sem identificação pode ser de empresas de telemarketing, mas atendi e a surpresa foi ótima.


  • Aqui é um índio véio lá do Voutoro. Se apresentou do outro lado da linha um velho amigo. Nosso vizinho lá de Erechim e pai de amigos infância do Clóvis, da Miriam e do Wagner. Nelson Guimarães, aos 82 anos está firme, forte e saudável; Porém com um defeito irrecuperável, incorrigível e imperdoável. torcedor do Sport Club Internacional.


Não falava com ele desde 1988, quando eu ia seguido a Porto Alegre, durante muitos anos. Moravam na Mariante, pertinho do viaduto da Protásio, e já se passaram 33 anos. É muito tempo.


Daí me recordei coisas boas da infância, quando éramos vizinhos, em Erechim. Os contatos eram diários. Ele e meu pai eram caçadores de velórios. Outra hora conto este causo.


Eram famílias conhecidas e os vizinhos eram mais do que parentes, conviviam, se ajudavam e tinham uma prosa diária com uma cuia de chimarrão.


Recordo do Simca Chambord Jangada do Nelson Guimarães. Carrão de dar inveja. Uma station wagon, motor 2.3  V-8. Beberrão, fazia uns 6 km por litro. Mas nos anos 70 a gasolina era muito barata. Dava para andar nestas banheiras. O nosso vizinho da frente o Nilton Tibursky tinha um Galaxie ou Landau. Coisa linda, um luxo. Na rua de baixo, na Farrapos tinha o Schwingel que exibia um Dodge Dart. Mas imagina o custo para encher o tanque.


Aos domingos de verão, tio Nelson levava os filhos e eu de contrapeso até o Colégio Agrícola Ângelo Emílio Grando, onde havia um açude em que a piazada tomava banho. Era uma água suja barrenta, mas era tudo alegria. Dava para fazer piquenique, tomar banho no calor e nem se pegava doença de pele. Voltávamos no final do dia, cansados mas todo mundo contente.


Em outra ocasião, Nelson atravessou o Rio Grande do Sul com a  Jangada. Fez os 600 quilômetros de Erechim a Alegrete, onde viviam os avós maternos dos filhos dele. A viagem era uma aventura, pois era época sem rodovia duplicada, alguns trechos nem pavimentação tinha. Era buraco e poeira. E para turbinar a nave, misturou com gasolina de aviação, que se conseguia com amigos no aeroporto. O Chambord voava pela pampa gaúcha. Chegava a 100 km por hora e as velas ficavam azuis. Ultrapassava Opala, Corcel, Itamaraty, Aero Willys. Cruzando o Passo Novo, quase chegando a Alegrete, um peão de uma fazendo vendo àquela nave em uma carreira sem fim imaginou que era um moderno trem. Melhor que o Minuano e saiu queimando campo por lá.


Conversamos por telefone quase uma hora rememorando causos e situações que me deu pano para mais umas histórias. E como hoje é domingo e estou longe do açude do colégio agrícola, vou ficar por aqui mesmo, fazer um mate com erva da Barão e encher de quebra-pedra e carqueja dentro da garrafa térmica.

A história dos velórios? Conto semana que vem. 


sexta-feira, 21 de maio de 2021

Presentinho

 Presentinho


Quando eu era criança,  diariamente nossa casa estava cheia. Como a mãe era costureira vinham as clientes, as comadres e vizinhas e alí passavam as tardes e início de noite.


Falavam de suas vidas, de seus filhos, de seus problemas. Era um verdadeiro consultório sentimental, psicológico e de aconselhamento. Tinha até uma conhecida que “botava  as cartas” para as senhoras curiosas de suas vidas e futuros. Era a tia Ana Rigotti, que Deus a levou neste último domingo aos 98 anos.


Cada uma tinha sua história de vida, seus segredos, seus problemas. Algumas gostavam de bebida, outras de fumar, outras de fumar e beber, outras de gastar em vestidos novos e algumas roíam unhas, como vícios, nervosismo, outras eram carolas e não perdiam uma missa, outras só falavam da vida dos outros, outras se lamentavam da vida que tinham, outras pensavam o que fariam de comida. Enfim, assuntos variados. Repertório não faltava. 


Eu tinha uns 8 ou 9 anos, numa tarde a minha mãe me chamou e mandou eu levar um presentinho para a Tia Marlene. É a mãe de amigos de infância que convivíamos diariamente, o Wagner, a Miriam e o Clóvis.


  • Vai lá na tia Marlene e entrega este pacotinho para ela. Para mais ninguém - recomendou. 


Obedientemente peguei o pacotinho e fui caminhando, pelo costado da rua. Ainda não havia pavimentação e nem calçadas. Era perto de casa,  uns 200 metros de caminhada, próximo a famosa Escadaria, em Erechim, que ligava a avenida Salgado Filho da parte de baixo com a parte de cima da cidade.


Cheguei entrando. Naquela época,  chegávamos sem cerimônia,  as casas ficavam abertas. Desci a entrada da garagem, subi a escada que ficava do lado da casa,  que dava numa varanda que circundava toda frente e lateral direita da casa e tinha acesso a despensa e cozinha. Uma coisa que me chamava atenção naquela casa é que tinha uma banheira, dessas que só se via no cinema. Achava chic. Uma banheira estilo filme Psicose, de Alfred Hitchcock, onde o Normal Bates…….Com cortina de plástico.


Ao chegar o cachorrinho já me anunciou. Tia Marlene veio ver do que se tratava.

  • A mãe lhe mandou um presentinho - anunciei faceiro, imaginando que fosse de aniversário ou outra data especial, certo de estar trazendo uma boa surpresa.

  • Obrigado, vamos ver o que é - respondeu.

  • Tá bom. Concordei. Ela abriu o pacotinho, mal embrulhado, com papel simples e colado com durex. Desembrulhou o pacotinho onde havia uma caixinha dentro. Abriu a caixinha, fez uma cara pensativa, imaginando o que responder. Por frações de segundo me olhou, fitou a caixa e mandou o recado.


  • Leva de volta pra tua mãe e diz para ela comer tudo! Imagino você, se prestar para um serviço desses! - Devolveu o presente rindo.


Fiquei meio sem graça e voltei para casa. Voltei mais rápido do que fui. Tipo um pé lá e outro cá! Entrei porta adentro meio assustado e fui direto  na sala de costura. Sentadas quatro mulheres me olhando e intimamente ansiosas para saber como foi a reação da entrega do presente. Me olharam, com um leve sorriso sarcástico no canto da boca e babando para saber o que houve.

  • O que a tia falou?, perguntou a mãe rindo.

  • Disse que é para a senhora comer tudo - respondi


A mãe, a avó Elvira, a tia Koka e a dona Setembrina caíram na gargalhada. Pois eu fui apenas o mensageiro.


As “véias”  pegaram uma caixinha de fósforo, tiraram os palitos e encheram de unhas cortadas e mandaram eu levar para provocá-la. Já que a Marlene tinha o costume de roer as unhas. Logo em seguida chega a tia Marlene, que veio “tirar satifação”. Só restou darem risada umas das outras e seguir a roda de chimarrão e em meio a tecidos, máquinas de costura.


Lembranças de uma infância feliz.


terça-feira, 18 de maio de 2021

As costuras de Casildo

 As costuras de Casildo



Já era esperada esta triste notícia. Acordei e li o ocorrido, mas já era algo que se esperava. Ele estava doente e fora hospitalizado. Mas é bom guardar a imagem de um sujeito de coração maior que Santa Catarina, de alguém bem humorado, brincalhão, mas que sabia exercer autoridade com respeito

Morre com Casildo uma fase da história catarinense e de grandes líderes políticos carismáticos e amados pelas pessoas.


Em 2001 quando foram derrubadas torres gêmeas de Nova Iorque, estávamos no San Willas Hotel em São Miguel do Oeste e o Diário Catarinense publicou uma pesquisa do Ibope e que Luiz Henrique nem teria chances contra Amin. Isto um ano antes da eleição. Luiz Henrique ficou chateado, visivelmente abatido. Casildo tratou de animá-lo. 

-Luiz, temos muito chão e poeira pela frente, Vamos ganhar essa. Tentava animar.

Na volta, eu, Luiz Henrique e Casildo num Sêneca voltamos tarde da noite. LHS chateado nem falou com a gente. Eu e Casildo secamos uma garrafa de uísque para afogar as mágoas.

Mas não esmoreceu e nem deixou LHS ficar chateado, continuou firme por toda Santa Catarina para eleger o amigo governador. 

  • Luiz Henrique diz que sou costureira! - brincava ele pois LHS falava das costuras políticas que o senador oestino não se cansava de fazer. Buscava os históricos, convencia os novatos de que era importante buscar todos, inclusive de outros partidos para obter a vitória.

Assim era Casildo, um ser humano merecedor de ser seu amigo.



Senador da Galícia


Em outra ocasião, estávamos em Porto União, no distrito de Nova Galícia. Era uma festa da comunidade ucraniana. Uma professora havia feito uma exposição de fotos da Lumber, empresa americana que assassinou a floresta catarinense para abastecer o mercado americano.

 

E ali estava a foto de Ted Roosevelt, que foi presidente americano, na época senador. E Casildo, no discurso da professora, foi o segundo senador a por os pés na Nova Galícia. Primeiro Roosevelt e segundo Maldaner. 

Era bom companheiro de estrada, alegre e brincalhão.


Me chamava de “irixim”, com seu sotaque alemão. Ele era de Carazinho, perto de Erechim região que ele conhecia e em nossas andanças conversávamos bastante nos longos trechos de cidade em cidade em busca de votos para tornar Luiz Henrique governador.


Em 2013 esteve em Joinville, me ligou e fomos ao Sopp, restaurante bacana que não existe mais. Ali comemos Hackpeter e insisti para ele experimentar o submarino.

Tomou dois ou três submarinos, um ato de valentia.


Este era Casildo, uma alma enorme que Deus o tenha.




domingo, 16 de maio de 2021

Sem selfie mas feliz

 Sem selfie mas feliz



Esperei com ansiedade o dia em que ia chegar minha vez de receber a vacina contra a Covid. Algo que deveríamos ter já resolvido desde o ano passado se não fosse a contrariedade do genocida. Enfim, chegou e os brasileiros estão sendo vacinados, uma chance a mais de viver, que meio milhão de pessoas não tiveram no Brasil. 


Nos Estados Unidos foi só trocar o truculento e burro por um democrata que a vacina surgiu. Já vacinaram toda população adulta e já estão imunizando crianças e turistas que chegam ao país.


Quando cheguei no Centreventos Cau Hansen, onde fica a central de imunização de Joinville, para receber minha primeira dose me deparei com muita gente. Imaginei “vou perder a tarde toda na fila”. Mas relaxei, afinal eu quero viver. Não importa quanto tenho de esperar.


Perguntei a um dos soldados do 62º Batalhão de Infantaria de Joinville se eu deveria esperar aquela gente toda. O rapaz atencioso organizava as chamadas por horário e a fila de entrada no local da triagem, conferência de documentação. Me explicou que muita gente ia ao local com horas de antecedência “para não correr o risco de perder a vez”, mesmo tudo agendado e com garantia de ter a dose salvadora de vidas.


Sentei, abri o livro de 700 páginas que estou lendo Pilares da Terra de Ken Follett e consegui ler três páginas até que o soldado veio no grande salão e chamou os que tinham agendamento para 16h10min. Era minha vez! Foi rápido e eficiente. Mas o salão continuava cheio de pessoas que tinham ido horas antes.


Conferidos documentos de identificação e requisitos para me vacinar, em seguida chamaram meu nome. 


- Cabine 17, por favor senhor. Orientou o outro soldado do 62º BI. 


Segui entrei no local, apresentei documentos novamente, respondi algumas perguntas e chegou a hora tão esperada.


  • Alguém pode tirar uma foto minha enquanto recebo a dose de vacina? Perguntei ao servidor que estava no computador conferindo a documentação e registrando na carteira de vacinação a data que recebi a primeira dose e quando devo voltar para a segunda agulhada que me deixará imune a este vírus mortal.

  • Senhor, acho que não vai querer registrar, esta vacina é da AstraZeneca e é aplicada em seu quadril, Favor ficar ali com o colega que vai lhe aplicar. Me detalhou o motivo.


Dei dois passos, fiquei olhando para a parede, baixei um pouco o cós da calça e esperei a bendita agulhada.

  • Vai ser só uma picadinha! Alertou o enfermeiro. Confesso que nem senti. Me recompus, peguei meu livro, casaco e cachecol de lã, pois estava frio e sai da cabine 17, frustrado por não ter selfie mas feliz porque vou viver mais.

Felicidade dupla de chegar aos 57 anos saudável, com muitos amigos, com filhos maravilhosos e agora vacinado. Vamos ver nos próximos dias se vai surgir um rabinho de jacaré e dentes pontiagudos.

Feliz e agradecido a Deus por não ter sido incluído no meio milhão de brasileiros que perderam a vida nestes últimos meses.

Vamos comemorar a vida com alegria. E bom domingo a todos nós. 


domingo, 9 de maio de 2021

Ele não veio

 Ele não veio 

A rotina era a mesma. Acordava cedo, fazia fogo no fogão a lenha e enchia uma chaleira com água da pia e colocava em cima da chapa para esquentar a água. Esperava chiar e não deixava ferver para não queimar o café e ficar amargo. Passava uma xícara café no coador de algodão, cujo aroma ia longe e inebriava as narinas e estimulavam os sentidos dando mais energia.

O pão feito no forno de tijolos lá no pátio, no dia anterior é saboroso. Feito com produtos naturais e com muito carinho, assado com calma durante algumas horas de trabalho, geralmente de manhã.

Assim seguem os dias e sua única companhia é o pequeno cãozinho que acompanha todos os movimentos, parecendo entender cada ato, cada passo, cada gesto. Antes de pensar no almoço é hora de umas cuias de chimarrão na área da frente para ver o movimento, mas principalmente para esperar o mensageiro de boas novas, o amigo carteiro.

Diariamente a esperança era ver o rapaz de amarelo correndo de casa em casa. Como era vizinho e conhecido, às vezes parava na casa de um e tomava um café, às vezes um mate em outra casa e seguia seu ofício de levar a correspondência. Muitas vezes as notícias dentro do envelope não eram nada animadoras, mas a esperança de receber algo de bom sempre existia.

Naquele dia, a manhã estava calma e pouca gente passou na calçada e apenas um carro subiu pela rua em direção ao centro.  Sentada na cadeira que ficava sempre na varanda, tomou mais uma cuia de mate e acariciou o cachorrinho e como de hábito conversou com ele, que parecia entender cada palavra.

- Será que o carteiro não vem hoje. Espero tanto uma carta de meu filho. Onde será que anda, será que está bem, tem se agasalhado, comido bem, tem onde morar? Mas porque ele não veio hoje?

 

O cãozinho olhou firmemente, lambeu as mãos da senhora, deitou a cabecinha nos braços dela e olhou em seus olhos. Ela entendeu o que ele queria dizer. Sim, poucas pessoas nas ruas, quase nenhuma viva alma e o carteiro não apareceu. Claro, hoje é domingo, Dia das Mães.

 


sábado, 1 de maio de 2021

A maconha e o cogumelo

 A maconha e o cogumelo


Tenho o hábito de ler os jornais digitais de manhã, nos finais de semana com uma cuia de mate em uma mão e o mouse na outra. E lendo uma notícia de apreensão de 200 mudas de maconha em estufas em duas casas no Rio Vermelho e Vargem Pequena, em Florianópolis, lembrei de um caso ocorrido nos anos 70 lá em Erechim.


A tal de cannabis ainda é crime no Brasil. Não é mais no Uruguai, nem nos Estados Unidos e nem em muitos países, onde há lojas especializadas que geram emprego e milhões de tributos ao Estado. É uma erva, que estudos comprovam tem efeitos benéficos neurológicos, cura do câncer, glaucoma e calmante. Também dá para fazer tecidos para roupas e um brim forte para jeans e calçados.  Se tornou “droga” porque a Igreja Católica assim o quis. Mas deixemos desta explicamos e voltamos ao meu vizinho.


Tinha uma piazada na rua todos na faixa de 10 a 14 anos e sem um tostão no bolso. Vivíamos do pai e da mãe que às vezes dava uns trocados para o cinema, ou comprar sorvete seco, maria-mole, paçoca, mu-mu, mirabel,  laranjinha Balvedi nos botecos do Preá, do Canova e do Benjamin, ali na volta da quadra. Só que em outra quadra morava um cara com uns 17 ou 18 anos e que andava bacana, roupa legal, dinheiro no bolso. Vivia com os avós aposentados e não tínhamos noção de como vivia com dinheiro, roupas boas e sapato lustrado.


Numa manhã ouvindo a Rádio Erechim o Jovino Martins noticiava a prisão de “um bando de transviados maconheiros”, que foram pegos num acampamento num local chamado Estar Chile, um loteamento perto do morro da TV e com bela vista para o Vale do Dourado. Era uma noite de lua cheia, cujo brilho refletia no vale e causava uma visão noturna bonita, adornada pelas tochas de bambu com querosene para enfrentar a noite de temperatura baixa. Todos presos, fichados e meu vizinho estava lá. Deu falatório na vizinhança e na cidade. Imagina que Erechim naquela época tinha uns 40 mil habitantes e todos se conheciam.


Daí soubemos de onde vinha a grana do bacana. 


Isso bem antes da maconha da lata. Fato mais recente, quando no verão de 87/88 apareceram boiando latas cheias de maconha no litoral brasileiro. É que os tripulantes do navio Solana Star, que vinha da Austrália, estava no litoral do Rio de Janeiro carregando 22 toneladas de maconha. Informados que a Polícia Federal iria prendê-los jogaram tudo no mar. Não deu flagrante. Os entendidos atestam que era produto de alta qualidade. Mas voltamos a Erechim e ao meu vizinho.


O falatório era de que o produto era muito bom, que teria vindo do Paraguai ou Pernambuco. Mas passados alguns anos, meu vizinho foi para a Universidade de Passo Fundo cursar Medicina. E nas férias de final de ano ficava em Erechim e às vezes nos encontrávamos na avenida Maurício Cardoso, uma avenida bonita com duas pistas e canteiros arborizados, jardins bem cuidados e bancos para as pessoas sentarem, conversar, apreciar o movimento, tomar chimarrão.


Proseando com o vivente perguntei de onde vinha a maconha de alta qualidade que ele vendia para os espertos e que deu apreensão e prisão.


Ele me contou os detalhes. Não era só  a maconha, mas também cogumelos que davam uma visão transcendental e bela do Vale do Dourado. Algo mais lindo que a aurora boreal do polo norte. Tinha gente que via até ETs, naves extra-terrestres e alguns juravam de pés juntos que tinham sido abduzidos, namorado ETs e voltaram para recriar um novo mundo. Tá bom… Loqueou.


Após anos ele desfez o mistério da produção e qualidade da erva e do cogumelo.


Me relatou que, com tempo de sobra, recolhia material que havia em abundância pelas ruas e também ia lá em casa e pegar um dos ingredientes.


Apurava a receita no fogão a lenha, fogo baixo para não queimar e assim trabalhava algumas horas para na produção e posterior lucro, principalmente nas noites de sábado. Também tinha alguns clientes da elite que apreciavam a planta medicinal. E assim ele administrava a sua carteira de clientes com boa rentabilidade.


Tinha o mercado na mão, ou seja a oportunidade, a cadeia produtiva desde os insumos até a boa clientela. 


Me detalhou os segredos do negócio: para fazer a maconha recolhia “bosta” de cavalo, secava e misturava com folhas de malva, que às vezes pegava no nosso pátio que tinha bastante. Tudo bem sequinho na chapa do fogão à lenha, triturava bem, misturava tudo  e prensava. Deixava secar e estava pronto o produto. E o poderoso cogumelo, este era mais complicado e longe para obter, tinha de andar um pouco mais afastado onde havia vacas leiteiras. Só era bom o cogumelo que crescia na “ bosta de vaca”. Este sim tinha poder. Alertou que nunca se poderia inverter a receita, ou seja, fazer maconha com bosta de vaca e cogumelo com a bosta de cavalo. Aí os efeitos seriam danosos e perderia a respeitabilidade do produto e do mercado. Nunca tentou mudar a fórmula para evitar riscos no empreendimento.


Sabedor das fórmulas do lucro fácil até fiquei tentado a ser empreendedor, mas achei melhor esquecer este tipo de investimento. 


Mas como hoje é sábado, meio frio e com lua bonita, vou esperar a noite chegar. Se ouvir algum uivo de lobo, olhos amarelos me olhando através dos galhos balançando pelo vento,  chirriar da coruja me observando de cima do galho da goiabeira, morcegos em vôos rasantes vestidos de Batman e uma nave pousando no terreno ao lado, só pode alguém ter misturado cocô de cachorro na minha erva-mate. 


Vejam só que colorido lindo esta lua. Ela se move e metamorfoseia.


Bom final de semana e largue mão de ser bobo.