A falecida na cozinha
Há alguns anos, morreu uma senhora muito querida, da vizinhança. Amizade familiar que ultrapassou meio século. Naquele tempo em que os portões não tinham tramela e se dormia com as portas sem chavear.
Ela já estava em idade avançada e numa tarde de verão quente não aguentou o calor, idade avançada, pulmões fraquinhos e pressão alta. Sempre teve saúde de ferro. Viveu muito porque também não dispensava um copo de vinho tinto todos os dias, desde que o pastor não soubesse e gostava de banana amassada com aveia no lanche da tarde. Tinha disposição de ir para o centro a pé enfrentando ladeiras, tinha de pegar a aposentadoria e pensão, pagar os carnês das lojas, água e luz. O que sobrava guardava em casa, pois não deixaria o dinheirinho no banco.
A notícia de sua morte não foi surpresa. Já passava dos 90 anos.
Vizinhança tratou de avisar filhos e netos e prepararam o velório em casa mesmo, evitando gastos. Durante a noite, mais para a madrugada apenas dois vizinhos estavam na sala com a morta. Os parentes tinham ido para outro lugar discutir o que fariam com a casa e quanto daria pra cada um. Afinal ninguém queria viver ali.
E lá pelas 3 horas da madrugada de lua cheia o meu sobrinho Fábio e outro vivente ali da vizinhança sentaram na escadinha em frente a casa para papear, esperar o sol clarear e ver se os parentes voltam e a chegada de mais vizinhos. Lá pelas 10 viria o padre encomendar o corpo, o carro fúnebre e o ônibus para levar os amigos e vizinhos até o cemitério para enterro.
Os dois ouviram um barulho estranho dentro de casa. Levantaram e se afastaram mais para o lado da rua, onde tinha outra escadinha que dava acesso ao passeio público. Fizeram silêncio, e novamente barulhos estranhos vindo de dentro da casa onde na idéia deles só havia a falecida no meio da sala entre 4 velas.
Mais um silêncio e novamente barulho de panelas.
Será que a vó ressuscitou? Já ouvi falar de coisas assim. Disse Fábio ao outro vizinho que estava em vigília. Estava mais branco que pano alvejado em quarador.
Pois olha Fábio. Eu vou embora. Com assombração eu não mexo. Já me caguei todo uma vez lá no Pai Nelito. Tchau! - despediu-se o vizinho deixando Fábio solito na madrugada com o mistério do barulho que vinha de dentro da casa.
Mais um pouco de silêncio e veio forte um chiado de fritura e cheiro de ovo na frigideira.
Mas não pode ser. Aí tem dente de coelho ou é coisa mandada. Pensou. Precavido, deu a volta na casa e espiou pelos fundos. Subiu uns degraus da escadinha em cima do poço e olhou para a cozinha que ficava nos fundos da casa. O que viu foi assustador.
Sai daí seu gambá. desliga o fogo e te aquieta, ordenou meu sobrinho ao acontecido.
O mistério se desfez. O vizinho cachaceiro, criado na vizinhança, vivia com o beiço inchado de cana. Entrou pelos fundos curtido de cachaça, com fome, viu que não tinha ninguém, nem foi na sala onde estava a falecida. Ligou o fogão, derrubou algumas panelas e esquentou a frigideira. Atirou meia dúzia de ovos no óleo, fez uma lambança, sujeira e se fartou. Agora restabelecido, desceu e foi embora dormir, na casa ao lado.
Restou ao meu sobrinho esperar o amanhecer para não deixar a falecida sozinha. Vai que o cozinheiro volte…
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