quinta-feira, 17 de novembro de 2022

A falecida na cozinha

 A falecida na cozinha



Há alguns anos, morreu uma senhora muito querida, da vizinhança. Amizade familiar que ultrapassou meio século. Naquele tempo em que os portões não tinham tramela e se dormia com as portas sem chavear.


Ela já estava em idade avançada e numa tarde de verão quente não aguentou o calor, idade avançada, pulmões fraquinhos e pressão alta. Sempre teve saúde de ferro. Viveu muito porque também não dispensava um copo de vinho tinto todos os dias, desde que o pastor não soubesse e gostava de banana amassada com aveia no lanche da tarde. Tinha disposição de ir para o centro a pé enfrentando ladeiras, tinha de pegar a aposentadoria e pensão, pagar os carnês das lojas, água e luz. O que sobrava guardava em casa, pois não deixaria o dinheirinho no banco.


A notícia de sua morte não foi surpresa. Já passava dos 90 anos.


Vizinhança tratou de avisar filhos e netos e prepararam o velório em casa mesmo,  evitando gastos.  Durante a noite, mais para a madrugada apenas dois vizinhos estavam na sala com a morta. Os parentes tinham ido para outro lugar discutir o que fariam com a casa e quanto daria pra cada um. Afinal ninguém queria viver ali. 


E lá pelas 3 horas da madrugada de lua cheia o meu sobrinho Fábio e outro vivente ali da vizinhança sentaram na escadinha em frente a casa para papear, esperar o sol clarear e ver se os parentes voltam e a chegada de mais vizinhos. Lá pelas 10 viria o padre encomendar o corpo, o carro fúnebre e o ônibus para levar os amigos e vizinhos até o cemitério para enterro.


Os dois ouviram um barulho estranho dentro de casa. Levantaram e se afastaram mais para o lado da rua, onde tinha outra escadinha que dava acesso ao passeio público. Fizeram silêncio, e novamente barulhos estranhos vindo de dentro da casa onde na idéia deles só havia a falecida no meio da sala entre 4 velas.


Mais um silêncio e novamente barulho de panelas. 


  • Será que a vó ressuscitou? Já ouvi falar de coisas assim. Disse Fábio ao outro vizinho que estava em vigília. Estava mais branco que pano alvejado em quarador.


  • Pois olha Fábio. Eu vou embora. Com assombração eu não mexo. Já me caguei todo uma vez lá no Pai Nelito. Tchau! - despediu-se o vizinho deixando Fábio solito na madrugada com o mistério do barulho que vinha de dentro da casa.

Mais um pouco de silêncio e veio forte um chiado de fritura e cheiro de ovo na frigideira. 


  • Mas não pode ser. Aí tem dente de coelho ou é coisa mandada. Pensou. Precavido, deu a volta na casa e espiou pelos fundos. Subiu uns degraus da escadinha em cima do poço e olhou para a cozinha que ficava nos fundos da casa. O que viu foi assustador.


  • Sai daí seu gambá. desliga o fogo e te  aquieta, ordenou meu sobrinho ao acontecido.


O mistério se desfez. O vizinho cachaceiro, criado na vizinhança, vivia com o beiço inchado de cana. Entrou pelos fundos curtido de cachaça, com fome, viu que não tinha ninguém, nem foi na sala onde estava a falecida. Ligou o fogão, derrubou algumas panelas e esquentou a frigideira. Atirou meia dúzia de ovos no óleo, fez uma lambança, sujeira e se fartou. Agora restabelecido, desceu e foi embora dormir, na casa ao lado.


Restou ao meu sobrinho esperar o amanhecer para não deixar a falecida sozinha. Vai que o cozinheiro volte…


Nenhum comentário:

Postar um comentário