domingo, 30 de junho de 2024

O CANTANTE PIALADO POR UMA DAMA




Era bom cantador de tangos e boleros, mas não era afeito a lida do dia para ganhar a vida. Changueva pelas estâncias em troca de um prato de comida, um mate e quem sabe um gole de pura para espantar a poeira. Assim vivia. Sempre pilchado, para poder trabalhar em aramados, consertos diversos, tosquia, tarefas nada especializadas como ginete, manejo de rebanho e outros ofícios do campo.Mas levava sempre na mala de garupa um terno de risca de giz bem cuidado, camisa social Volta ao Mundo, sapato lustrado, um pote de brilhantina glostora para ajeitar as melenas.


Nas sexta-feiras depois do meio dia e da sesteada nos pelegos nada mais fazia. Tratava de tomar um banho na sanga, se barbear  e bebericar doses do conhaque Sedutor que dizia limpar a goela para a cantoria noturna na pulpería.


Seguia para o bolicho no final da tarde. O bolicheiro já servia um duplo de conhaque em copo liso e alto e deixava no canto do balcão. Os artistas haviam improvisado um palco com caixotes perto da porta dos fundos, afinal se estourar uma rebordosa seria fácil ganhar o campo e fugir a trotezito. Os frequentadores e as damas que ali passavam as noites, em sua maioria já tiveram algum entrevero, uma peleia com os brigadianos.


Noé o cantante, vaidoso, levava um espelhinho desses de pendurar na parede. Colocava num prego existente e ali deixava junto com o glostora e um pente de osso de chifre. Volta e meia se olhava e ajeitava os cabelos, que rebeldes de nascimento  pior que lixiguana, se descolavam. O tocador de bandoneon era argentino papudo, que deu com os costados naquele rancho. Mentia que já havia tocado com Gardel. O terceiro era um uruguaio com cara de bugre que trazia o bombo leguero. Estava feita a orquestra.


Finais de semana era um desfile dos mais afamados tangos e boleros que faziam sucesso nas rádios, Mas naquele final de semana, Noé estava de orelha baixa, sem brilho na voz. Cantava como se fosse por obrigação para entreter a peãozada, ganhar uns trocados e quem sabe se alguma das damas se afeiçoasse se ele poderia ter uma noite em uma cama quente e carícias até o amanhecer.


O dono da pulperia percebeu a condição do vivente e perguntou:


  • Porque o amigo está abichornado no canto aí. Nem bolero e nem tangueou e nem cantou Por Una Cabeza?

  • No puedo olvidarla. Ella tomó un pedazo de mí. Pero sé que ella volverá. respondeu com a voz embargada

  • Deixa disso cabron. O amigo é valente, enfrenta até cruzeira no campo e agora vem com esta bobajada de querer a Anita. Ela é uma dama que nunca ficará com você e nem com um só. Muitos patrões perderam a cabeça por ela, que deve ter cruzado o rio.Beba mais um liso e vá depenar aqueles bisonhos no pano verde e no bilhar.


Com profunda tristeza, Noé olhou o espelhinho pendurado no prego da parede, passou mais uma camada de glostora, penteou o cabelo para o lado direito, guardou o seu pente de chifre no bolso do paletó. Antes acendeu uma vela para o Negrinho do Pastoreio e de joelhos fez apenas um pedido:

  • Tengo fe y quiero que traigas de vuelta a Anita.


Seguiu para o pano verde e a mesa de bilhar, que ficavam num quartinho meio escondido do lado da pulperia. Quando nasceu o sol, ponteando o campo, recolheu o que ganhou, botou na guaiaca e com sua mala de garupa seguiu seu caminho para mais uma semana de lida e de sonhos. Quem sabe ela volta. Afinal o Negrinho do Pastoreio nunca falhou com seus pedidos.


Eu já acendi uma vela de 7 dias para garantir meu pedido. Bom domingo para todos nós.


sábado, 22 de junho de 2024

NENHUMA MENSAGEM JAMAIS CHEGARÁ


A todo momento Inês olha o celular, desbloqueia, verifica mensagens, principalmente do whatsapp. Há meses que só chegam mensagens infames de bom dia, orações, receitas culinárias, assuntos dos catequistas, clubes de mães, correntes de orações e memes que conhecidos de seus grupos mandam. A principal mensagem que ela gostaria de receber, alegraria seu coração solitário, que por nove anos recebeu e deu amor, não aparece na tela do celular. 


O silêncio do aparelho é como se tivesse espinhos no seu smartphone. Cada vez que ela pega e faz isso a toda hora, nada encontra e sente os espinhos cravados em suas mãos, pois foi ela quem o afastou e se arrepende de seu ato.


Passa os dias relembrando os bons momentos que passou com Ary. Eram raros os encontros, mas intensos e ela era surpreendente. Preparava surpresas que ele adorava. Falavam todos os dias, nem mesmo a distância, o frio, chuva ou o rigoroso inverno foram capazes de esfriar os encontros.


Completariam dez anos de intimidades, de amizade e cumplicidade. Ary estava entusiasmado em vê-la de novo e passar algumas horas na companhia daquela pessoa querida que se tornou bem mais do que amizade. Apesar da distância sentiam atração um pelo outro e alimentavam este relacionamento como se estivessem vivendo na mesma cidade. Falavam da vida, do trabalho,das agruras, encantos e desencantos e também de suas frustrações do dia a dia, mas principalmente nutriam o carinho que um sentia pelo outro e a atração que era algo, como dizem química. Sedutora, sabia cativar os desejos de Ary, que não media tempo e distância para vê-la.


Antes de completarem 10 anos deste bonito relacionamento, Inês colocou um ponto final. Começou a arrumar desculpas para não mais encontrá-lo. Ary ficou chateado e tentou entender este comportamento. Afinal sempre demonstrou o seu amor. Programava as férias em função de viajar para ficar com ela, mesmo que fosse por pouco tempo. 


Ele entendeu que era o fim quando leu uma publicação que dizia algo como afastar alguém de sua vida vai ser melhor. Ele entendeu que nunca mais a veria. Também não a procurou mais. Afinal, não iria atrapalhar a vida de quem ele sempre teve um carinho muito grande. Acreditou durante  muitos anos que o que sentiam era mais do que amizade, que era algo tão real e bonito que poderia ser o tal amor, cantado pelo mundo e que muitos passam a vida sem encontrá-lo.


Sabiam que jamais ficariam juntos, mas tinham a certeza do que sentiam e da explosão de felicidade ao se encontrarem. Ela esperava e vibrava. E nem mesmo colocando o celular embaixo do travesseiro e olhando a cada minuto a mensagem que Inês espera,  não vai chegar. Ary foi embora. Mudou para sua cidade natal e comprou um motociclo Jawa de fabricação tcheca, ano 1964 com alforges. Reformou e sai de vez em quando em passeios curtos onde tem asfalto para não sujar e nem estragar a raridade. Só restou para Inês caminhar na praia, com esperança de que o vento do mar traga uma garrafa com uma mensagem dentro dela. O mar não tra



sábado, 15 de junho de 2024

Dia dos Namorados acompanhado do conhaque amigo


Nesta semana passei na casa de um amigo de longo tempo. Fui abrindo o portão sem tramela e entrando. Dei a volta pelo lado da casa, um cusco cruza de pastor com vira-latas já veio abanando o rabo, numa faceirice de dar inveja a solteirona que dançou no baile dos Monarcas. 


Lá no fundo do lote, embaixo de um pé de canela, com bom sombreamento estava o Carlos, ou Calinho para os amigos. Com um canivete Solingen na mão direita estava peleando com uma laranja. Sentado num cepo de madeira de lei, usava outro menor para servir como mesa, onde exibia uma garrafa pela metade do conhaque Sedutor. Ouvindo uma seleção de dar dó, do sofrimento e da dor de corno que devia estar sentindo este filho de Nosso Senhor.


  • Buenas, amigo velho - cumprimei ao chegar

  • Buenas, senta aí, fica quieto, não enche o saco ou te arranca. Me recebeu com seu jeito peculiar.


Me estendeu a mão direita com uma cuia de mate com carqueja. Vi que a coisa não estava boa. Parecia um bezerro desmamado, desacorçoado e macambúzio. Puxei prosa:


  • Quem morreu? 

  • Ninguém

  • Mas esta cara dá medo

  • Não te mete, respondeu


Me serviu um generoso gole do Sedutor, que por valentia tomei num trago só. Limpei a goela e fiquei curado do resfriado. Remédio bom.


Calinho já é moderno e usa Spotify. A seleção incluia Waldick Soriano, Altemar Dutra, Lindomar Castilhos, Odair José, Gilliard, Amado Batista e algumas românticas gaúchas como Romance na Tafona de Luiz Carlos Borges. Aí já entendi que o problema era o cornismo. O chifre do vivente estava arrastando no pátio e levantando poeira.


Me servi de mais uma cuia e depois mais uma dose de Sedutor. Pelo teor alcoólico deveria ser “embelezador” pois num baile lá pela meia noite todas viram princesas ao olhar de quem entornou duas ou três doses daquele conhaque, que os cantores usam para aquecer a voz.


  • E o que deu no bicho? Perguntei.

  • Milhar na cabeça, melhor que ganhar por uma cabeça no prado.

  • E na carrera na cancha do Tio Floriano?

  • Ganhei três paradas e perdi uma por causa de um pangaré.

  • E no osso, deu alguma coisa?

  • Credo! me respondeu mais animado e me mostrou o bolo de dinheiro do bolso.

  • E lá no torneio de bilhar? 

  • Sempre tem um incauto. Sai campeão e com guaiaca recheada.

  • Só falta me dizer que aquele galo velho ganhou a rinha?

  • Nada, apostei no galo cinza que deu dois puaços e saiu vencedor. Com um leve sorriso de canto de boca me mostrou a bolada que tirou do outro bolso.

  • Semana de sorte, e no pano verde?

  • Limpei três argentinos, dois paraguaios e um pé vermeio do Paraná. Foi de mão.

  • Mas se a semana foi tão boa, por que esta tristeza? 

  • Não me pergunte. Não vê a casa vazia?

  • Pois é,  só está o cusco aí soltando pelo. Onde anda Paulinha?

  • Pegou as trouxas e se foi e passei o dia dos Namorados solito, abandonado que nem o verso: Sigo que nem filho de perdiz, todos meus irmãos casaram, só eu que ninguém quis.Declamou meio borracho.


Entendi o sofrimento e a dor. Como diz o ditado: Sorte no Jogo, Azar no Amor. 


Calinho levantou, firmou as pernas e me convidou:

  • Vamos dar um pulo na pulperia, chegou uma roleta nova.


Seguimos adelante, juntar mais uns pilas na algibeira.






sábado, 8 de junho de 2024

Primórdios do Galpão Crioulo

 Semana passada assistindo pelo canal You Tchê entrevista da locutora da Rádio Guaíba e cantora nativista rio-grandense Maria Luiza Benitez, também premiada em festivais, me recordei dos primórdio do ótimo Galão Crioulo (primeiro programa), criado pela TV Gaúcha, em 1982, há 42 anos. A primeira música foi Veterano com Leopoldo Rassier e Os Serranos que haviam ganho a Calhandra de Ouro por terem vencido a 10ª Califórnia da Canção Nativa, em 1980, em Uruguaiana.


Ela relembra, nesta entrevista, como foi criado o Galpão Crioulo e cita o meu amigo de longa data Carlos Kober, com quem tive uma prosa sobre isso. Trabalhamos juntos e rememoramos os tempos de quando a música gaúcha era de alta qualidade e os festivais se espalhavam pela pampa trazendo talentos e canções inesquecíveis. Era voz, violão, acordeon, bombo leguero e nada de modernidade eletrônica. Infelizmente a NSC não transmite para as terras catarinenses este ótimo programa produzido pela RBS gaúcha.


Tive oportunidade de ver a música autêntica. Quando eu ia para a lida na RBS TV Pelotas fazíamos as mateadas onde muitos destes grandes nomes participaram. Tive a oportunidade de ver ao vivo gente como a própria Maria Luiza Benitez, Leopoldo Rassier, Luiz Carlos Borges, César Passarinho, Telmo de Lima Freitas, Mário Barbará, Leonardo, João de Almeida Neto, João Chagas Leite, Pedro Ortaça, José Cláudio Machado, Adair de Freitas, Pedro Ortaça,Mano Lima, Teixeirinha, Joca Martins, Dante Ramon Ledesma, Noel Guarany, Jayme Caetano Braun,Cenair Maicá, Os Fagundes, Délcio Tavares, Os Serranos e é claro Os Monarcas de Erechim, minha cidade. 


Como renovação veio uma geração como Renato Borghetti (Borghettinho) e sua gaita-ponto, muito difícil de tocar. Encantou o Rio Grande quando surgiu aos 16 anos e levava multidões para assisti-lo, principalmente quando puxava uma milonga.


E nos encantava também as vozes femininas como a Maria Luiza Benitez, Oristela Alves , Fátima Gimenez, Loma, Janaina Maia, Lu Schiavo, Shana Müller e Berenice Azambuja.


O Galpão Crioulo foi um marco na divulgação da verdadeira cultura gaúcha, feito com esmero e valorização da raiz musical rio-grandense.


A gauchada aproveitava os grandes festivais que revelavam grandes nomes e grandes canções de sucesso. Califórnia, Coxilha, Reponte, Canto Missioneiro, Moenda da Canção, Tafona, Jerra,  são  festivais afamados com artistas de boa procedência.


Ouçam estes artistas citados e depois me digam se gostaram. Não tem como não apreciar, sorvendo un amargo solito, despacito.


Sugestão de programas de rádio de boa qualidade que divulgam a música nativista gaúcha, em Joinville:


Sons do Sul - Jones Oliveira

Joinville Cultural - 105,1

Domingos - 6h30min


Alma de Galpão - Edson Copetti

Rádio Máxima FM- 96,7

Sábados das 9.00 às 13.00 hs


Chão Farrapo - Liminha

Udesc FM - 91,9

Sábados -  17 horas

reprise domingo às 8h


Vou preparar um mate com erva de Erechim. Bom final de semana.





sábado, 1 de junho de 2024

A CARTA QUE NUNCA CHEGARÁ

Era bem cedo e os campos ainda estavam cobertos de fina camada de geada. O bater de cascos era ouvido de longe, mas Heloísa não deu bola, afinal muito tropel havia o dia todo pela estrada, mas aquele era um diferente. Minutos depois ouviu alguém bater palmas na frente da casa.


  • Clap! Clap! clap! Ouviu mais forte. Foi atender, com certo medo, era meio cedo e a  cerração dificultava a visão e a geada branqueava o cerro.


Abriu uma fresta da janela e reconheceu Pacífico, um jovem uruguaio bem apessoado de quem ela sentia carinhos bem intensos, em seus sonhos, sem nunca tê-lo tocado. Imaginava como teria sido se um dia tivesse sido beijada por ele, um ginete dos bons, campeão das competições de laço comprido e vencedor de várias corridas de cancha reta. 


  • Buenas senhorinha Helena, su papá  Honório está?

  • O Pai está lá pra fora, apartando um bezerro que nasceu, respondeu.

  • Vim me dar adeus ao senhor seu pai e agradecer pela amizade de tantos anos com nossa família.

  • Mas o que houve? Me conte o acontecido?

  • A chuva levou a casa, o mangueirão, as matrizes prenhas e a casa não existe mais. Vou para cidade ser peão de oficina. Dizem que tem vagas. Mas meu assuntamento com seu pai é para vender este baio ruano com todo o encilhamento. É novo e  bom de lida com sela  nova. Só levo o xergão que vai ser meu colchão. Seo Honório me paga o quanto e quando ele puder. Mando uma carta lá do pago que eu me aquerenciar.


Heloisa calou por segundos, emudeceu e gotas de lágrimas escorreram de seus olhos. Sentiu um sufoco em seu peito e dificuldades de respirar. Era muita emoção, choque e surpresa e principalmente a dor de que nunca mais o  veria. Fez um sinal com a mão de que esperasse um instante. Voltou com uma mala de garupa e dentro dela duas lembranças que ele deveria aceitar e levar.


  • Toma el poncho de mi padre, te mantendrá abrigado en el frío del invierno, acepta esta plata como depósito para el caballo. Entonces hablaré con mi padre. Disse Heloísa desviando o olhar para ele não perceber a sua tristeza pela despedida.

  • No puedo aceptar. Es el poncho de lana uruguaya de tu papá.Respondeu o peão que nasceu em 33 no Uruguai mas vivia nas estâncias da região deste piazote.


E por último ela abriu um lenço branco que trazia junto de si. Abriu e mostrou para ele ofertando o mimo.

  • Leve junto ao seu peito esta roseta que caiu do bridão de seu cavalo, na cancha reta do Caverá. Peguei como recordação e agora você leva meu coração junto a você por toda a vida.


Ele emudeceu, pois nunca havia achado a roseta depois daquela tarde quando venceu o certame por uma cabeça. E a revelação desse amor, também o deixou meio sem rumo, mas não podia se deixar levar por sentimentos. Tinha de seguir adelante.


Se olharam nos olhos profundamente. Amarrou as rédeas do baio na cerca. Aceitou os presentes e disse adeus.


Ela o beijou no rosto e sabia que nunca mais o veria, e nem receberia a carta, pois Pacífico nunca soube ler e escrever, mas quem sabe alguém escreva por ele, ela pensou com esperanças de um dia reencontrá-lo.


La esperanza es lo último que muere.


Nunca deixe de beijar quem lhe agrada. Beijo adiado é beijo perdido, diria Heloisa.


Vamos adelante e despacito.