sábado, 23 de novembro de 2024

SOIREE NO FERRINHO E A TABELA DE PREÇOS



Nos anos 80 quando eu trabalhava em uma grande empresa de comunicação, em Pelotas, onde fui o chefe de jornalismo e a equipe contava com um dos motoristas meio renegado. Mas sempre com grana no bolso. A maioria ganhava pouco e sempre não dava até o final do mês, mas o Val sempre com carteira recheada.


Quando havia pautas como jogos do Brasil ou do Pelotas nos domingos de tarde, estava feita a briga, se negava a trabalhar, fazia confusão, mas escala é escala. Se não for trabalhar  troca com alguém ou é descontado o dia, e sempre se repetia  a mesma situação. Certo dia perguntei aos colegas o motivo da revolta. Tínhamos um outro colega que não perdia a Tablada (hipódromo), pois apostava nos cavalos. A turma do carteado era de noite.


Aí meio que demorou para me falarem algo. Umas duas semanas depois, escalado para levar a equipe em uma partida no Bento Freitas, onde o Brasil receberia um time nacional. nem lembro mais qual. Apertei o cerco e pedi que ninguém trocasse com o horário com Val. Ele teria de ir. Fez um banzé e o chamei. Ou cumpre o horário ou demissão. Daí ele me contou.


  • É que nos domingos vou no Ferrinho, justificou.

  • O que é isto? Questionei.

  • Lá na Ferroviária tem um clube o Ferrinho que faz bailinhos nos domingos de tarde. Detalhou. 

  • Sim, mas o que tem isso a ver com o trabalho?

  • É que tem uma tabela de preços.

  • Todo lugar tem, para entrar e para beber e para comer, comentei, ainda com paciência.

  • Tu não entendeu ainda. é uma tabela de preços para dançar com as mulheres, respondeu detalhando os valores e serviços. Para cada tipo de música dançada um valor e se a dama desejasse a companhia na mesa a tarde toda, tipo namorado o valor seria mais elevado e se ela optasse pela companhia do rapaz para levá-la até em casa, o valor seria acrescido com bônus substancioso. Afinal as ruas do bairro Simões Lopes e Fragata, principalmente, não eram muito confiáveis nos finais de tarde.

  • E você acompanha muitas senhoras até em casa? Perguntei ao Val.

  • Sim, teve uma tarde que acompanhei quatro em uma tarde. Rendeu bom dinheiro. 


Orientei que não faltasse ao trabalho, pois ali era seu ganha-pão. E no Ferrinho fazia fila de “coroas” com idade avançada, daquelas bem rebocadas de pintura, voz grossa por causa do Hollywood que fumavam um atrás do outro, e o cheiro insuportável de perfume Dolce Vita, sabonete Phebo, talco Cashmere Bouquet ia longe.


E Val, naquela tarde de sexta comprou um Drakkar Noir de um “executivo de fronteira” que trazia muambas do Chuí. Final do expediente foi ao camarim, molhou o cabelo, puxou para o lado e passou um gel. Camisa limpa que tirou da sacola, sapatos lustrados e correu para o ponto do ônibus. Pensei, mas hoje não tem Ferrinho, é sexta. Perguntei ao guarda que me respondeu.


  • Hoje é sexta e tem Estrela Gaúcha, no Fragata.

  • Mas tem coroa com tabela? perguntei

  • Tem umas com tufo na guaiaca, garantiu o guarda da noite.


Para você entender, o Ferrinho era o Clube Ferroviário, junto à estação da RFFSA, na avenida Brasil, no Simões Lopes, saída de Pelotas para Rio Grande.


E assim segue o baile.



domingo, 17 de novembro de 2024

O ENXOVAL DA LURDINHA

Há alguns dias encontrei a Lurdinha, sentada em frente da casa dela bordando um pano de secar louça. Talentosa na culinária e no crochê, afazeres que aprendeu nas necessidades da vida e convivência com a mãe e com a avó. A família era grande e todos se encaminharam. Os homens foram embora buscar seus rumos, as irmãs casaram cedo, como era de costume. Lurdinha cuidava da avó e da mãe e a vida toda preparou seu enxoval.


Lembro que a mãe dela, uma senhora de poucas posses,sem estudo e que trabalhava como faxineira, criou todos e sempre confidenciou para as comadres de que sua maior dor e preocupação era a Lurdinha: Como vou morrer e deixar a Lurdinha desamparada sem um marido? Como se o casamento fosse resolver algo, afinal nem o dela resolveu, porque o marido sumiu quando a família aumentou. Preferia zona, bebidas e liberdade sem compromisso de sustentar a todos.


Enquanto eu conversava com Lurdinha ela não tirava os olhos do bordado. Ponto a ponto ia surgindo no pano branco, esticado com arcos, o desenho de um pato sorridente.


  • Já fiz todos os bichinhos. comecei com a galinha, porco, vaca com balde de leite, tem o ganso brigão, meus cachorros e agora o pato dando risada, explicou. Deu uma parada e me serviu um mate. Ainda bem que não era com mel. Afinal eu sou muito mais jovem para ela pensar numa possibilidade dessas.

Tomamos algumas cuias e ela fez questão de me convidar para entrar. Entramos na casa, fiquei meio empacado e ela insistiu para me levar até o quarto dela, na casa onde vivia com a mãe e a avó. Aí fiquei mais preocupado ainda. Ela que não queira realizar os sonhos dela comigo, pensei. Dou de rédeas e sumo campo afora. 


Ela se ajoelhou na beira da cama e puxou as cinco malas, daquelas antigas feitas de um tipo de papelão, uma cartonagem mais grossa que se a chuva pegasse desmancharia. Colocou-as em cima da cama e abriu toda. Me mostrou o enxoval feito e quadrado nos últimos 50 anos. Ali tinha lençol, fronha, toalhas, panos de prato e outras peças. Tudo limpinho, branquinho e engomado, nada amarelado.


  • Lurdinha, você ainda faz o seu enxoval? Perguntei.

  • Como assim? Ainda faz… me repreendeu. Acendo vela para Santo Antonio todos os dias e sei que um dia o Agenor vai vir me buscar. Ela prometeu para minha mãe que se casaria comigo e que ela poderia morrer em paz que eu ficaria amparada. 


Elogiei o capricho do enxoval da Lurdinha e concordei que o Agenor um dia pode aparecer. Preferi ficar quieto, pois em boca fechada não entra mosca. Mas me deu vontade de dizer para Lurdinha que Agenor partiu para o campo santo há 30 anos. Quem sabe em outra vida se encontram.


Agora vou tomar meu mate e quem sabe aprender a bordar em crochê.


quinta-feira, 7 de novembro de 2024

O CAVALO FOI ÀS COMPRAS

Nesta semana conversando com um amigo de longo tempo, o Pedro Calza, conhecedor como poucos sobre cavalos, comentamos sobre a inteligência e esperteza deste bicho que é mais sabido que muito vivente. Ele me mandou o vídeo do cavalo que entrou em uma loja de materiais de construção em Palmeira das Missões, na região missioneira do Rio Grande do Sul. 


Conhecedor como poucos, Pedro, desde os tempos que integrava o 1º Regimento de Cavalaria de Guardas, oficialmente denominado como Dragões da Independência,  uma unidade do Exército Brasileiro, cuja missão principal é guarnecer as instalações da Presidência da República, relata que viu muitos cavalos espertos, mas como este missioneiro nem tantos.


Contei um causo que ocorreu em Santa Vitória do Palmar há uns 40 anos, onde um malfeitor assaltou um banco a cavalo, no melhor estilo velho oeste. Pegou o dinheiro, forrou a guaiaca e a mala de garupa, pé no estribo e dê-lhe relho, adentrou no banhado do Taim e sumiu. Nunca mais foi visto e nem o dinheiro.


Mas neste caso de Palmeira das Missões, desconfiamos que o cavalo foi lá escolher um bom madeiramento para nova baia. Entrou na loja, os balconistas continuam com a cuia na mão sem dar atenção ao freguês. Ficaram se olhando e nem bola para o cliente. Não encontrando deu de costados no mostruário, fez confusão que nem cusco em procissão, e saiu dando um salto pelo self-service ou pelo caixa, como queiram,  não pagando nada, afinal nada comprou. 


De longe parece um baio amarillo, os desentendidos vão achar que é caramelo, mas isto é só para cusco. Chegamos a conclusão de que o dito cavalo não encontrou um produto de boa qualidade e nem aprovou o procedimento dos bolicheiros que nem serviram um mate para o andante.


E se o dito baio voltar. Parece que vai ter um lanchinho bem sortido com alfafa e cenouras, um balde de água fresca e uma escova para dar um trato na pelagem do cliente.


E agora vamos camperear porque o dia não está ganho e só progride quem vai para a lida bem cedo, ao acordar com saracuras e quero-queros. 


sábado, 2 de novembro de 2024

Dia de los muertos e os velórios que fomos

 

Durante muitos anos estive envolvido em campanhas e comunicação política. Certo dia um importante político, de abrangência muito grande me ligou da capital e combinou:


  • “Beur”, nem sempre pronunciava todas as sílabas. Vamos no velório do fulano - me convidou. Havia morrido um conhecido de longa data que tinha sido secretário municipal e tínhamos uma relação de trabalho e amizade.

Fui para o Cemitério Municipal na hora marcada, e esperei na frente até ele chegar. Desceu do carro, com seu já conhecido óculos escuros. 



  • Que bom que você veio, vamos lá levar nossos sentimentos à família! Disse ele me dando um abraço e seguimos para a primeira capela.  Ele entrou com toda a certeza, firme e fomos direto no caixão, fizemos uma oração apoiando nas mãos do morto. Olhei o falecido, não reconheci, olhei para o chefe, fechou a cara, como se estivesse dizendo: fica quieto. Sentamos junto a família e conversamos um pouco. 


  • Vocês se conheciam? Mas como? O senhor aqui. Nunca imaginei…

  • Há coisas que só Deus sabe…disse ele e nos despedimos e saímos.


Tínhamos ainda mais mais quatro velórios. Ao caminhar pela calçada entre um e outro muitos vinham ao nosso encontro e restou entrar em todos e dar os pêsames para todas as famílias, até chegar ao nosso colega que havia passado desta para outra melhor.


A visita nas capelas da rua Borba Gato no Cemitério Municipal era para ser algo de 15 minutos, mas como encontramos muita gente conhecida em cada capela, fomos parando, conversando, tomando um café, um chimarrão, papeando com os conhecidos que ficamos até o final da tarde, na hora do sepultamento de nosso amigo às 17 horas. 


  • Há tempos eu não tinha uma tarde tão boa. Rever tanta gente boa e poder dar um último abraço nos que se foram. Por isso devemos fazer o bem para as pessoas em vida. Reconhecer seus valores enquanto estão entre nós. Obrigado pela companhia, agora tenho de voltar para Florianópolis.


Nos despedimos e segui para casa, matutando este conselho filosófico.


De nada adianta limpar o túmulo e levar flores se não havia respeito, admiração e amor em vida.