quinta-feira, 25 de novembro de 2021

Me enterrem na terra vermelha missioneira

 Me enterrem na terra vermelha missioneira



Medeirinhos era um senhor já com idade avançada. Trabalhou na “repartição” onde cumpriu seu horário diário por mais de 35 anos. Sempre britânico em sua pontualidade. Nunca perdeu um dia de serviço e também nunca adoeceu a ponto de não ir trabalhar.


Estudado para ser Agrônomo, fez concurso para trabalhar no governo. Recebia um salário médio bom, mas nunca desperdiçou um níquel sequer. Ia todos os dias para o serviço, sempre de fatiota. Sua única extravagância nos gastos era um bom alfaiate e os únicos adereços que usava eram um relógio e um anel de formatura em ouro e safira azul. Conservador, nunca admitiu que no serviço público o cidadão fosse atendido por alguém “em mangas de camisa”. Expressava sua insatisfação.


Sempre estava com os sapatos lustrados, que ele mesmo dava o brilho. Jamais gastaria com  um engraxate. Lavava as próprias roupas para economizar e morava em quartos de pensão ou de famílias que alugavam cômodos.


Gastava o mínimo do que ganhava e vivia franciscanamente. Pouco comia. Era um senhor de baixa estatura, magro e sempre gentil, educado e pronto para uma boa conversa. Nunca se casou e também nunca viram ele em companhia feminina, nem mesmo em casas de tolerância. Era uma incógnita.


Assim era Medeirinhos. Sem referência de família, pouco  se sabia da vida pessoal. Apenas que tinha uma sobrinha em São Luiz Gonzaga, de onde ele veio há muitos anos para trabalhar na repartição estadual que cuidava dos parques florestais. Econômico porque temia o futuro


  • Nunca se sabe o dia de amanhã! repetia Medeirinhos que recebia seu salário no Banrisul e depositava a maior parte em uma caderneta de poupança da Caixa Econômica Estadual do Rio Grande do Sul. 


Serviços médicos usava os do Ipergs - Instituto de Previdência do Estado do Rio Grande do Sul. Se o assunto de saúde não era grave, ia na Farmácia onde o “Doutor Paulo” receitava  e vendia. Era um farmacêutico que dava consulta, prescrevia e manipulava remédios.


Para os colegas da repartição sempre deixava dito que se algo acontecesse com ele os amigos deveriam abrir a pasta preta pendurada atrás da porta do quarto da pensão ou moradia onde estivesse vivendo. Ali estavam as instruções.Bem à vista e fácil de encontrar.

 

E como o tempo e destino são implacáveis, Medeirinhos certa manhã não apareceu na repartição. Os colegas estranharam pois ele era o primeiro a chegar e o último a ir embora. O relógio na parede marcava 8h01min e nada do Medeirinhos. Os colegas, da mesma faixa etária, começaram a se preocupar e a  comentar. Combinaram: Cada uma vai por uma rua até a casa onde ele mora lá perto do Mantovani (escola estadual de segundo grau). 


Chegando na residência bateram palmas e em seguida a dona da casa que alugava quartos abriu a porta:


  • O que houve? Perguntou uma senhora, bem forte, de descendência italiana

  • Viemos saber se está tudo bem com o seu Medeirinhos que não foi para a repartição.

  • Também não vi ele no café, vamos lá bater na porta do quarto. Convidou a dona da casa.


Bateram na porta e nem sinal de Medeirinhos. Escutaram encostando o ouvido na porta e nada. A dona da pensão pegou um copo e colocou na porta para melhorar a audição. Certamente apreciava ouvir os segredos dos hóspedes. Sugeriram que a dona da casa abrisse a porta pra ver se ele estava dormindo. O que era improvável. Medeirinhos era madrugador. Acordava cedo, se barbeava, vestia o terno, escolhia a gravata e lustrava os sapatos antes de ir para o café e depois caminhar cerca de um quilômetro até a repartição.


Abriram a porta e lá estava Medeirinhos pronto e devidamente vestido com seu melhor terno. O chapéu de feltro estava ao lado dele, e o rádio ligado, no programa do Jovino Martins da Rádio Erechim. O quarto pequeno tinha apenas uma cama de solteiro, uma cadeira e uma mesa. Uma cômoda com as roupas dobradas e bem passadas. 


Sua feição era de tranquilidade. Rosto com sulcos pela idade, mas o cabelo farto bem preto. Há quem diga que ele pintava. Tinha um leve sorriso no rosto. Morreu em paz. Os colegas lembraram da recomendação de que abrissem a pasta preta com instruções.


Se estão lendo é porque chegou a minha hora. Trabalhei muitos anos, poupei para o dia de amanhã. Nunca se sabe quanto tempo vai durar esta crise. Meu último pedido é que chamem minha sobrinha e que ela me leve para me enterrar na minha cidade. Quero voltar à terra vermelha de São Luiz Gonzaga. Deixo minha Caderneta de Poupança da Caixa para as despesas e o resto ela guarde para o futuro dela.


Entendido o pedido, os colegas trataram de chamar a sobrinha que após uma longas horas de tentativas de contato e anúncios feitos na rádio das missões ela retornou. Telefonou para a repartição onde todos os cinco colegas estavam na volta do telefone para ouvir quando a sobrinha do Medeirinhos viria. Explicaram o acontecido e as instruções do amigo falecido. Os cinco na volta da mesa do telefone ouviram:


  • Vamos fazer assim. Vocês enterram o tio por aí e o que sobrar me mandam uma ordem bancária. Ele nem vai saber onde está enterrado. E também nem consigo mais pegar o trem esta semana. Determinou a sobrinha.


Os colegas do Medeirinhos se olharam e ficaram quietos, mas prosseguiram com o plano. Compraram um terreno bem situado no cemitério, fizeram um jazigo decente e na lápide uma inscrição: “Aqui jaz um missioneiro que amou sua terra e agora volta ao solo da pampa. Do pó viemos e ao pó retornaremos”. Usaram as economias da crise do dia de amanhã que nunca veio. O que sobrou doaram para o asilo. A sobrinha recebeu uma carta alguns dias depois com os recibos dos gastos, comprovantes da doação e o extrato da Caixa com saldo zero. E um bilhete dos amigos


Fizemos conforme sua orientação. Enterramos Medeirinhos com dignidade e respeito aqui mesmo. Afinal você mesmo disse que ele nem vai saber onde foi enterrado. Junto neste envelope os recibos dos gastos que foram necessários. Requer ainda que você mande o valor do último aluguel.


Esta foi uma justa vingança.




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