sábado, 11 de fevereiro de 2023

O padre do KM 4

 


No início dos anos 80 estava, ainda, em efervescência na América Latina e Teologia da LIbertação concebida nos anos 60 e que tinha o Frei Leonardo Boff e Frei Betto como destaques desta nova filosofia de defender os oprimidos. Afinal a Igreja é para o povo e não para os ricos.


A América Latina estava fervendo com Sendero Luminoso, FARCs e tantas outras milícias, organizações políticas militares que queriam o poder. Era perigoso andar por aí.


Mas ali no KM 4, que é um enclave com vida própria. Não aceitam pertencerem aos bairros Santa Catarina e nem Boehmerwald. “Sou do KM 4!” respondem com precisão e orgulho. Ali nasceu um caboclinho, um dos filhos do pedreiro Constantino, que era mais metido que toucinho em feijão. Seguia os preceitos familiares que eram assíduos na Igreja Católica, lutas de base e até filiado ao PCB já foi.


Por estas andanças fez amizade com um Padre de verdade que era bem defensor das comunidades. O tal padre era considerado radical pelos demais, e este caboclo, amigo do padre era considerado bem mais “lutador pelos direitos humanos”.


Certa feita, os dois resolveram peregrinar pela América Latina. Com pouco dinheiro, iam de carona ou transporte barato. Em São Paulo pegaram o Trem da Morte. A rota atravessava o Pantanal e subia até a Bolívia. Nada temiam, estavam com crucifixo prateado que o padre verdadeiro havia ganho na ordenação sacerdotal.


Quando o cansaço era demais, se apresentavam nas paróquias como padres brasileiros, recebiam cama, comida, banho e seguiam em frente. Assim percorreram vários países em uma odisséia pelas florestas e pueblitos.


Atravessaram a Bolívia e foram em direção ao Peru, numa época em que o grupo maoíta Sendero Luminoso intensificava ataques e emboscadas. 


Queriam chegar em um povoado quando foram rendidos pelo Sendero. Aí veio o pavor. O “Padre do KM-4” de joelhos com fuzil na nuca já estava rezando em espanhol fluente. Foram levados a um acampamento no meio da floresta, pois poderiam ser espiões “del gobierno", ou pior agentes “de la CIA”


Suava frio no meio da densa floresta úmida e quente. Impossível relaxar. Era só esperar a hora do fuzilamento. Foram dias de agonia. Comida ruim, água de córregos, cagar no mato com um senderista lhe apontando um fuzil. 

Mas num domingo de manhã veio um mais graduado.


  • Entonces, ustedes son sacerdotes brasileiros.Questionou o líder que havia chegado.

  • sí señor. estamos viajando por america latina para entender las dificultades de la gente - respondeu o padre verdadeiro, enquanto o Padre do KM-4 de mãos posto em direção ao céu puxava o terço bem baixinho.

  • Quiero ver si son verdaderos sacerdotes. Voy a reunir a todos y el domingo vas a decir misa. es difícil traer un sacerdote aquí. Ordenou o chefão..

  • Diremos misa con mucho gusto, señor.Assentiu o padre verdadeiro.


Sem largar as armas, o barraco onde comiam virou igreja, a mesa de pau a pique virou altar. A bandeira da guerrilha foi usada como toalha. A hóstia foi feita com pedaços de pão cortados em pedaços com as mãos e o vinho havia de sobra em garrafões para amenizar o sofrimento daquelas almas.


Após a missa, o chefe do acampamento senderista se aproximou, pediu benção ao Padre de verdade e olhou de soslaio para o padre do km-4 e perguntou:


  • Padre, este no es un sacerdote, ¿verdad?

  • sí, señor. Si se ordenó recientemente. aun le queda mucho por aprender, respondeu o padre de verdade enquanto que o padre do km 4 nem respirava. Não largava o terço

  • investigamos y usted es inocente. puede volver a su tierra.Ordenou o chefe terrorista.


Após semanas de retorno chegaram num domingo,  estropiados no famoso centro do mundo KM 4, loucos por um frango assado maionese, farofa e boas horas de sono.  





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