sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

Eu conto ou você conta?

 Eu conto ou você conta?


Campanhas eleitorais rendem muitas histórias. Numa das campanhas eleitorais que participei Por Toda Santa Catarina ocorreu este fato verídico, verdadeiro e testemunhal. Tínhamos uma equipe pequena, coesa e competente.


Fui escalado para subir o Planalto Serrano e cobrir os eventos do candidato na região. Marcamos a saída na sede do QG às 6h para ir despacito morro acima. A equipe composta por motorista, fotógrafo e o repórter de texto. O jornalista geralmente vai no banco traseiro e lá me instalei. Livro na mão e fones de ouvido para escutar músicas sem incomodar os outros colegas. Sempre levava uma pequeno travesseiro para o tradicional cochilo em longos trechos. 


Saímos do centro de Florianópolis e seguimos pela BR 101 rumo ao sul para subir a 282 por Santo Amaro,  Rancho Queimado e chegar em Lages.


Mas ao atravessar a ponte o motorista perguntou se poderia parar em Forquilhinhas, em São José antes de engrenar a viagem. Precisava pegar algo em casa. Tudo bem. Concordei e meti o focinho no livro, fones de ouvido escutando a CBN Diário.


Chegamos na casa do colega e nem dei bola, fiquei lendo sem saber onde estávamos. Mas o fotógrafo me cutucou e disse: Olha só. Não acredito! - Fechei o livro, tirei os Rayban, dei uma longa olhada e concordei. Vieram recepcioná-lo duas belas jovens vestidas apenas com shortinho minúsculo, blusinha curta e rasteirinhas. Eram de saltar os butiás dos bolsos. Mais bonitas que laranja de amostra. O motorista retornou e perguntei quem eram as duas moças: Uma era namorada e outra irmã. Pensei, como este galo cego está bem servido assim. Quase analfabeto, vesgo e meio burro casado com uma garota dessas. E a irmã..Salve!


Seguimos viagem na 282, conversamos pouco sobre futebol. Ele era Figueirense e eu tinha simpatia pelo Avaí. Antes de chegar a Bom Retiro tem um posto de gasolina e parada chamada Janaína. Paramos para esticar as pernas, tomar um café, ir ao banheiro antes de completar o último trecho até Lages.


Voltando ao carro ele comentou que a irmã estava triste pela decepção amorosa e o Posto Janaína era o motivo da desilusão. Antes de trabalhar na campanha o motorista dirigia um caminhão para uma grande rede de lojas e semanalmente fazia entregas no Planalto Serrano, Tabuleiro. Subia pela 282 até Lages, depois retornava por São Joaquim, Serra do Rio do Rastro e 101 até em casa.


A irmã estava namorando um sujeito que estava desempregado e ele propôs levar o cunhado como ajudante para descarregar o caminhão. Fizeram algumas viagens sempre com parada no Posto Janaína. De uns tempos em diante o cunhado sumia. Ia no banheiro e demorava uns 15 minutos, atrasando o roteiro de entregas. Assim foi numa semana, na outra e quando chegou a quinta semana de viagem e paradas de 15 minutos no posto. Apesar de meio tanso, não era totalmente bobo. Toda vez que paravam o cunhado sumia e um frentista do posto também. E saiam do banheiro mais ou menos juntos. Viu, gravou na mente e ficou quieto. Era quinta-feira e seguiram o trecho. Retornaram na sexta, caminhão no depósito e foram embora.

        No domingo, como muitas famílias ainda fazem, reúnem todos para o almoço. A diversão aos domingos de manhã era zoar com carros velhos no interior de Forquilhinhas, mas lá pelas 11 estavam em casa para o almoço de domingo.

        Já era quase uma da tarde, todos acomodados no mesão montado na garagem. Mesa posta. Galinha assada, farofa, maionese, pão, farinha de mandioca, um pratão de tilápia frita, laranjinha Água da Serra, guaraná Pureza, fabricado em Rancho Queimado e cerveja da mais barata, já que tinha promoção no mercadinho. Quando começaram a se servir o nosso motorista bateu na mesa para chamar atenção de todos. - Toc! Toc! Toc!. Silêncio total e curiosos com o que ele queria falar: Vai anunciar casamento? Ganhou na Mega? Nada disso!

  •  Fulano, eu conto ou você conta? - intimou o motorista ao cunhado.

  • Tá louco, contar o que? - retrucou o dublê de ajudante e cunhado.

  • O que você faz nas paradas lá em cima no Janaína com o frentista do posto? - completou.

Rapidamente o cunhado levantou e saiu chispando. Nunca mais foi visto e desde então a garota do shortinho continuava desiludida, solteira e achando que todo homem não presta. 


quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

62 anos que não aconteceu

 62 anos que não aconteceu



Hoje ele estaria completando 62 anos. Jovem ainda e com muito tempo para trabalhar pela comunidade. O ex-prefeito Marco Tebaldi estaria de aniversário se a fatalidade do câncer não tivesse tirado ele de nosso convìvio.

Fui seu amigo e parceiro de trabalho por 27 anos. Enfrentamos muitas batalhas eleitorais. Ganhamos e perdemos. Brigamos e fizemos as pazes. Era um ser humano que se preocupava com as pessoas e tinha um coração enorme. Foi um ótimo prefeito e quem perdeu foi Joinville ao não reconduzi-lo ao cargo de prefeito quanto candidatou-se novamente.

A cidade está aí para quem quiser ver. Os últimos progressos de obras, asfaltamento, grandes equipamentos e avenidas foram feitos até 2008. De lá para cá, um abandono total, infelizmente

Mas a vida segue e com fé vamos trilhando nossos caminhos com a certeza de que ele fez todo o possível para tornar a vida dos cidadãos melhor.


Autógrafo e a falsidade artística

 Autógrafo e a falsidade artística


Em 2008 foi um ano eleitoral para prefeitos e vereadores e um líder de votação expressiva queria se candidatar a prefeito. Me ligou para uma conversa e discutir o cenário, coligações, planejamento, plano de governo e demais detalhes que envolvem uma campanha eleitoral. Marcamos no Anthurium Hotel, um belo prédio onde foi a casa do bispo.


Cheguei pontualmente às 11h na hora marcada, ele não havia chegado. Aproveitei para caminhar pelo jardim do belo Palácio Episcopal. Um jardim com bosque, piscina, sala de jogos, pássaros de todos os tipos atraídos pelas casinhas de sementes e frutas.  A decoração era única. Cada quarto tinha sua própria identidade e o hotel integrava o Roteiros de Charme.


Me instalei em uma mesinha e pedi um suco de laranja com hortelã para refrescar o típico calorão de nossa cidade. Uns 15 minutos depois chega o pretendente a candidato. Me cumprimentou, sentou e já chamou o garçom e pediu de longe fazendo gesto e falando alto: três doses de uísque em copo alto com pouco gelo. Isto às 11h15min da manhã. Sujeito valente e decidido.


Entabulamos a conversa, falei das eleições anteriores, avaliei perspectivas e a coinversa andava. Mas fora do restaurante que era todo de vidro e dava uma bela visão para o jardim, umas três ou quatro garotas nos observavam. Riam, faziam sinais, seguravam algo nas mãos, que de longe eu não conseguia ver.


Comentei com meu interlocutor. - Deve ser com você, que é famoso e tem votos. Ele não deu muita bola e brincando me respondeu. - Acho que é contigo que tem cara de artista. Nem demos bola e continuamos a prosa. Mas elas continuavam na porta, esperando por um sinal, uma aprovação para se aproximarem. Chamei o garçom e perguntei o que estava havendo, quem eram e o que queriam. Ele me respondeu:

  • Elas pensam que o senhor é artista. É que a dupla Edson e Hudson fizeram show na cidade e estão hospedados aqui no hotel. Elas querem autógrafo, tirar fotos. Me informou o rapaz.

 Entendi. Ouvi e já mudei de postura. Me ajeitei na cadeira, estufei o peito, encolhi a barriga e já fiz pose de artista. Perguntei o que cantavam, uma música de sucesso. Ele me informou que eles haviam gravado recentemente uma música do Moacyr Franco, Ainda Ontem Chorei de Saudade. 


Após a conversa com o meu interlocutor nos despedimos, coloquei meu óculos escuros, passei pela porta onde estavam as garotas para ir embora e parei. Elas, com seus CDs a mão pediram autógrafo. Prontamente eu falei que não poderia dar autógrafo sem meu companheiro de dupla que estava no quarto dormindo ainda, Mas que eu voltaria com ele em seguida para atendê-las. E cantei um pedacinho da música: Ainda ontem chorei de saudade: “Você me pede na carta que eu desapareça…” e fui me despedindo em direção ao carrro. Entrei e falei ao motorista; - Toca logo vamos sair daqui. E elas ficaram lá gritando lindo, lindo, lindo. Imagina se os verdadeiros artistas aparecem?


Já fui confundido em várias ocasiões com alguns conhecidos. Na Prefeitura mais de uma vez me confundiram com o Norberto Sganzerla que era presidente do IPPUJ. Na Secretaria Estadual de Educação com o Cromácio, que era o diretor financeiro e no Anthurium com o Edson. Na cidade do Sganzerla, certa vez cheguei no Hotel Jaraguá de Joaçaba e a recepcionista lascou: Boa noite, que bom que o senhor voltou. Seu quarto está pronto. Dei uma risada e nem perguntei com quem me confundiu. Mais distante foi em Praga, na República Tcheca. Fui num restaurante bacana com cervejaria própria e serviam um delicioso goulash. Um senhor bem vestido que estava numa mesa com mais pessoas levantou-se e veio me cumprimentar. - Que bom revê-lo. Em breve falaremos. Estendi a mão, cumprimentei e fui para uma mesa. Depois fiquei sabendo que era o embaixador brasileiro na República Tcheca.


Sempre repito se eu fosse inteligente como o Norberto, rico como o Cromácio e talentoso como o dito cantor, ninguém me aguentaria. Seria insuportável.






quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

Lúcifer de corpo fechado

 Lúcifer de corpo fechado



Cada cidade tem seus personagens. Neste final de semana dei uma volta lá em Erechim, onde nasci e me criei. Fugi de lá no início de 84 para estudar e progredir na vida. Se lá ficasse, é provável que estivesse até hoje trabalhando na rádio local. Naquela coisa: nome da música, hora certa, previsão do tempo, horóscopo,  lendo notícias dos jornais e  mandando alô e para os ouvintes.


Mas conversando com a parentagem recordamos de figuras que andavam por lá. Onde eu morava tinha o Zé Maria um negro forte atarracado, analfabeto e com uma voz grossa cavernosa. Tinha alguma deficiência mental, mas era educado e trabalhador. Limpava terrenos e fazia todo tipo de serviço pesado. Pelo centro circulava o folclórico Ratão. Pouca informação, parece que teria sido um bom técnico de eletro-eletrônica até que a loucura misturada com alcoolismo o fez surtar. Alguns fofoqueiros atestam que foi um caso de cornismo.


No São Cristóvão uma mulher manca foi apelidada de Ponta Esquerda e a Neguinha do Zero. Isto porque ela fazia o zero com a mão quando mexiam com ela. Nunca souberam o seus nomes.


Mas icônico era o Bastião Muié. Mistura de mulato com bugre, magrinho, sempre vestido com roupas femininas. Usava lenço na cabeça, eslaque pela canela, o que hoje a moda internacional apresenta, blusinha que hoje chamam de baby look exibindo a barriguinha com pelanca de uma pessoa de meia idade para cima. Sempre maquiado ou maquiada. Batom vermelho, unhas da mesma cor. Deveria ter sido artilheiro no Exército. Quando a piazada inticava com o Bastião Muié, a reação era esperada de imediato. Pedrada. Juntava pedras na rua e o tiro era certeiro na cabeça de alguém da turma. Algum cocoruto ele, ou ela acertava. Perguntei por lá se estava vivo? Uns atestam que sim, que vive no LInho, um bairro na saída de Erechim. Eu não acredito. Imagina. Nos anos 70 Bastião Muié já era velho. Hoje teria a idade do município, Mas vai saber.


Mais recentemente surgiu um sujeito valente, no Florestinha, na saída para Gaurama. Ninguém sabe como apareceu, nem de onde veio.

O sujeito era forte e mais grosso que dedo destroncado. De pouca fala, cara fechada e quando olhava para um vivente, este gelava o espinhaço e parecia que uma adaga vinha cortando. Alguns dizem que veio ali do interior de Campinas ou Quatro Irmãos.


Da noite para o dia surgiu dando as cartas em uma uisqueria. Botava ordem, ninguém abusava das gurias e para poucos se apresentava:

  • Sou o Lúcifer e tenho com corpo fechado! Ninguém questionava pelo tamanho, grossura e pouca conversa do sujeito. A fama se espalhou pela redondeza.

Cuidava da ordem do estabelecimento, quanto sentia algo errado em uma das suítes, barulho de bibelôs ou frascos de perfume caindo da penteadeira, metia a mão na porta. Geralmente as portas eram fechadas com um trinco,  amarrado com elástico ou então arrastando o bidê para fechar a porta e dar mais tranquilidade para o instante de amor. Lúcifer só dava um empurrãozinho e tirava o abusado porta a fora.


Se o sujeito estava só perdendo tempo na mesa,  com uma cachaça, cerveja barata, Porta Aberta ou Rabo de Galo e uma as formosas damas se aproximada e lascava: - Paga uma dose, bem... E o sujeito encolhido de tostões, Lúcifer com sua mão de colher uva em parreiral, encostava no ombro do “criente” e intimava: - Aqui está a dose que a mocinha pediu. Não tinha conversa nem negativa sobre quem iria pagar a bebida. Nunca ninguém retrucou argumentando que não havia pedido ou autorizado.

Não queria intimidade. Uma das moças um dia tentou. Se aproximou e falou: Lú você é tão bom para nós. Vou na colônia do pai e vou te trazer um presente.  A conversa entornou, e ficou mais grossa que feijão engrossado com farinha de mandioca. - Escuta bem alma perdida. Não te dei intimidade. Nada de Lú. Para você sou o “Seu Lúcifer e tenho o corpo fechado”.


Os fofoqueiro inventam mais. Dizem que ouviam coisas, que os olhos dele faiscavam quando brabo e resolvia tudo no tapa. Não andava armado. Afinal era protegido e tinha o corpo fechado.

Assim foi fazendo sua fama de imortal. Não tinha tiro nem facada que o acertasse. E quando ia comprar alguma coisa. Nada de cartão, nem de cheque. Era coisa mais linda do mundo. Tirava do bolso esquerdo da calça de tergal um maço de notas de 50 e 100 reais. Pagava à vista. Afinal a casa era de respeito e um empreendimento superavitário.


Certa noite, ao finalizar a função na casa. Fechou tudo, ordenou  que cada uma fosse para suas casas. Não queria ninguém no estabelecimento. Noite escura que dava mais  medo  do que ir no dentista.

Na madrugada gelada alguns viram ou imaginam que viram uma bola de fogo vinda do céu. Nada de barulho.

Na tarde seguinte, começaram a chegar as meninas para preparar a abertura da casa lá pelas quatro da tarde, ja que a rua é rota de caminhoneiros. Tudo fechado. Uma delas pulou a cerca e foi entrando. Porta destrancada. Ficou muda de susto. Ali no meio do salão estava o patrão Lúcifer deitado. Imaginou que tivesse dormindo. Deve ter enchido a cara e caiu bêbado no salão - pensou. Chamou, gritou, mas não chegou perto. Afinal ele não queria intimidade. Chamaram a ambulância e os paramédicos atestaram: Tá morto o vivente!

Examinaram, viraram. Nada de sangue, nada de tiro, nada de facada. Morte natural? Não se sabe. Nem mesmo o nome sabiam para colocar no óbito. Só tinha na testa uma queimadura em forma de pentagrama. O corpo era fechado, mas esqueceu da testa.

Apenas uma das gurias chorou.

  • Coitado, justo hoje que vim da colônia e trouxe um quilo de torresmo!



terça-feira, 28 de janeiro de 2020

Cuidado com os porquinhos

 Cuidado com os porquinhos




Certa feita tinha uma matéria para fazer para uma revista de pecuária. Visitaria uma fazenda lá pros lado de Herval, no sul do Rio Grande do Sul. Experimento com búfalos. Ficaria hospedado na fazendo e durante o dia acompanharia a lida. Contaria a história desde a introdução do animal indiano, adaptação na pampa, sua alimentação, manejo e aceitação pela peonada e mercado. Quem não gosta de muzzarela de búfala? No braseiro então é de lamber os beiços.

Cheguei na estância no meio da tarde e o capataz me recebeu com uma cuia de mate e mesa posta para alimentar o vivente. Me indicou um local para deitar o esqueleto, ali mesmo no galpão com a peonada. Era uma cama feita a facão, estrado de bambu, colchão de palha de milho e uma cobertura de pelego para ficar bem quentinha. Do lado da cama, um cepo com um pelego gasto para sentar e matear e prosear.

Me desvencilhei da mochila, peguei um bloco, caneta para anotações, verifiquei se a máquina Yashica FX-D tinha filme e fui começar a prosa com o pessoal entre uma cuia e outra, acompanhado de uma cachacinha e um picadinho de charque para amansar a fome. De longe dava para ver a manada de búfalos, chifre torno, pesadão. Alguns chegam a mais de uma tonelada. 

  • O bicho tem cara feia mas é manso, garantiu o capataz. Proseamos um bom tempo e anotei enquanto o fogo estava recebendo mais lenha para o jantar.

 Como sempre, um bom pedaço de carne assada, carreteiro, queijo do Uruguai e pão que a patroa assou no forno de barro pela manhã para receber o moço da cidade. O jantar no campo é cedo, para dormir cedo e acordar de madrugada para render o dia. Antes de dormir uma cantoria para relaxar com um trago de caña que trouxeram lá de Santo Antônio da Patrulha. É um santo calmante. Mas um chá de cidreira não pode faltar ou uma gemada com leite e casca de laranjeira. 

Lá pelas 4h30 da madrugada me acordo com a movimentação da peonada. Um já principiou o fogo para o mate e café de chaleira. O leite era tirado na hora para o camargo que nada mais é do que uma caneca esmaltada de café preto forte que se leva até a teta da vaca e tira o leite direto na caneca. Quentinho e cremoso, melhor que qualquer capuccino feito nas melhores cafeterias da Itália. Uns comem pão com salame, outros um bom pedaço de charque, outros carreteiro que sobrou ou as lascas de churrasco da noite anterior. Cortei duas fatias do pão caseiro e atolei  quatro colheradas de dulce de leche Conaprole ali do Uruguai e um pedaço generoso de queijo de búfala. Ficou gordinho e delicioso, mal consegui abrir a boca para morder de tão grande que era o lanchinho. Para garantir o dia, preparei mais dois sanduíches igualmente bem preparados com nata, queijo e carne. Cavalgar pela estância me levaria o dia e peão não volta para o almoço. Só vem para casa ao terminar a lida, lá pelas cinco da tarde.

Sentando no cepo, fiquei com minha caneca de café, tentando comer meu pão com doce de leite e queijo e  observando a movimentação, anotando e fotografando.

Mais adiante numa baia um peão estava escovando uma égua zaina (pelos pretos e castanho entrelaçados). Escovou o rabo, o lombo, acariciou suas crinas negras e conversava com a égua. Carinho igual se faria numa bela morena. Botou o freio, encilhou, manta, sela, barrigueira, estribos. Apertou bem, puxou as rédeas, deu um tapa no traseiro e elogiou:

  • Muy hermosa Zélia. 

Se achegou perto de mim e disse que o patrão mandou aprontar a Zélia para eu camperear. Agradeci e questionei se o animal era arisco, aporreado. Garantiu que não. Era ensinada e calma. Mas se eu fosse pros lado do Uruguai que eu tivesse cuidado com os porcos. Deu uma risada, pensando no que estava falando. Eu com medo de porcos, me criei vendo chiqueirão. Era Landrace, Large White, Duroc, porco carne, porco banha e outros menos cotados.

Peguei a máquina de fotografia com filme kodak de 36 poses e ISO 400 e mais dois rolos de garantia, atravessei no pescoço e puxei as rédeas da Zélia. Calcei as botas e ia botar as esporas. O peão disse que não precisava, a Zélia conhecia a estância e sabia voltar sozinha. Mas por que Zélia? Me explicou que o patrão deu este nome em homenagem a uma mulher que roubou a poupança dele e de mais gente. Não tinha mais detalhes de onde morava, se era ou não da redondeza.

Montei na Zélia e sai despacito, sem me exibir. Ia dar uma campereada, bombear de longe os búfalos e fotografar. Eu e Zélia andamos  pelo campo uns 5 quilômetros e ela empacou. Apeei, fiquei observando um bando de quero-quero e lá mais adiante uma família de mulita, numa sanga que corria coxilha abaixo e formava um banhado um monte de capincho se banhava e rolava no barro num dia de verão, acho que era fevereiro de lua cheia. Estava tudo mais tranquilo que vaca na Índia.

Enquanto isso a Zélia começou a comer grama, beber numa poça d'água. Sem me avisar, Zélia levantou a cabeça rapidamente, orelha em pé, empinou e deu pinote a trote largo. 

Pensei: Zélia é Zélia, depenou a guaiaca do patrão e agora me deixa no meio do campo, no mato sem cachorro. O que será que deu na cabeça desse bicho? Será que foi meus 100 quilos? Estava mais pesado que sono de surdo. Ou não queria aparecer na foto?  Se assustou com os búfalos, alguma cruzeira no pasto ( Esta cobra assusta até elefante e mordida de cruzeira não tem reza que cure. É só encomendar a alma e levar para o campo santo. Era uma cena mais feia que paraguaio baleado.

Olhei atento e nada de cobra, búfalos lá adiante, mas a polvadeira e os guinchos dava para ouvir. Um bando de porcos selvagens javalis dentuços e destruidores e raivosos vindos do Uruguai corriam em minha direção. Espalharam os búfalos, os capinchos perderam o rumo e nem sabiam para onde correr. A gritaria dos quero-quero dava para ouvir  léguas adiante.  Vi um capão numa coxilha uns 200 metros. Corri pra lá que nem cavalo de contrabandista e subi num pé de Guatambu. Foi o tempo que deu para me livrar da manada que passou como um terremoto. Dentes  afiados igual prateada feita no Uruguai, arrancava lascas da árvore. Não levantou poeira porque era no pasto. Esperei uma meia hora até ter certeza de que os porcos selvagens tinham sumido e que não voltariam para pegar meu couro. Desci da árvore me recompus, avaliei a bombacha, todas pregas em dia e segui a pé de volta à sede da fazenda.

Chegando lá, a Zélia me esperando com a cara de quem roubou a poupança de todos. Senti um risinho sarcástico da zaina. Passei ao lado dele raspando no pelo e virei a cara.

  • Nem te vi, bodosa, ladrona de poupança, traidora! Cochichei no ouvido da égua.  Enquanto isso o capataz veio saber o que houve. 

  • Buenas moço, o que houve que a Zélia que chegou antes?

  • Dispensei a égua antes que eu queria observar melhor os bichos - despistei, mesmo ele não acreditando na minha versão. Nesta hora a Zélia dá um relincho que mais parecia uma gargalhada.

  • A história já te julgou Zélia. E vou contar pra peonada que foi sua culpa deles não receberem salário naquela época. Vai rindo que o rabo de tatu vai te lanhar as costelas e a espora vai comer sua pança. Me vinguei! Imagina se depois dos javalis me aparecesse um leão baio. Daí sim a briga ia ser feita.


sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

O SENHOR É MEU PASTOR!

 O SENHOR É MEU PASTOR!


Por muito anos viajei por vários lugares do mundo. Em determinada época durante 9 anos seguidos fui a Paris, uma cidade que gosto. Mas só a circunferência de 4 km, que é onde estão as belezas da arquitetura, museus, boa comida, boa bebida, cultura e arte. Fora deste círculo vem a pobreza da periferia, os cinturões de miséria que hoje se alastram pelas calçadas, metrôs, marquises e avenidas.


Geralmente fico em hotéis da Place de La Republique, que são turísticos de baixo custo. Dalí uma caminhada de 2 km estou em Notre Damme e segue o circuito até Louvre, Tuileries, Eiffel, D`Orsay e os demais ícones.


Era um domingo 12 de maio de 2013, quatro dias antes de meu aniversário que comemorei numa visita ao Palácio de Versalhes. Garoa fina, um pouco frio, sai caminhar para comprar algo para comer, já que o café do hotel é caro (opcional) e ruim. Preferível ir na boulangerie da esquina e comprar uma baguette, alguns frios e vinho de preço médio e qualidade aceitável. Saí à direita pela rue du Malte, cheguei na esquina do Cafe Du Temple, olhei para os lados, só vi o caminhão lava-jato (limpeza) lavando as ruas. Sim jatos fortes lavam as ruas e calçadas por causa dos dejetos e cheiro de xixi que os imigrantes, principalmente africanos e do oriente médio, deixam pelas marquises dos prédios. A Boulangerie Artisan estava aberta desde cedo. Mas apenas uma vitrine com a janela  para a rua, algo impensável para nós. Os pães expostos num balcão. Ali mesmo onde tem fuligem, poeira e uma mania nojenta. Apalpam o pão. Soltam, pegam outro. Fazer o que, peguei um. Segui pela rue Faubourg, passei o açougue (boucherie)  e na outra esquina vi uma brasserie Cafe Grisette com doces lindos na vitrine, que me chamaram atenção. Alegria de gordinho.


Escolhi alguns para levar. Mas não me contive em comer ali mesmo um mille feuilles que de tão bonito e colorido dava dó de comer. Mas deixando de frescura é o folhado que tem em padarias locais. Segui minha romaria atrás do vinho. Lá você compra carne no açougue, pão na padaria, doce na doceria e bebidas na loja de bebidas. Mas o mercadinho estava fechado. Era cedo e sou madrugador. Todo lambuzado de creme e açúcar de confeiteiro, decidi esperar abrir. Estava pertinho do hotel, Só dobrar a esquina.


Uns minutos depois abriram a porta de rolo e as de vidro internas. Entrei, caminhei por entre os quatro corredores e cheguei na área dos vinhos. Comparei preços. - Não pode ser- pensei com meus botões. Aqui deve ser o único lugar do mundo onde a água é mais cara que o vinho. Acho que um litro de água custava 7 euros e uma garrafa de vinho 3 ou 4 euros. Fui olhando outros produtos como Foie Gras, escargots, patês, etc.


Uma das coisas que gosto e me dá prazer e tranquilidade é andar no supermercado. Mas este prazer foi interrompido:

Pastor, o senhor aqui. Não pode ser. Me abençoe pastor! O senhor acorda certo também? Onde o senhor está hospedado? Pastor, adorei sua pregação. Hoje vou mais cedo. - me abordou uma senhora de uns 40 anos. Fervorosa em sua admiração em me encontrar. Tentei falar alguma coisa para esclarecer que eu não era o pastor, que ela me confundiu.


Pastor, sou de São Paulo, estou aqui há anos, frequento a Pão da Vida há anos  e o senhor não imagina como estou feliz em lhe encontrar aqui. Sua pregação foi tão linda, mas tão linda que eu deveria ter gravado. Insistiu a devota. Apenas sorri e tentava falar algo para esclarecer o mal entendido. Nem peguei a tão sonhada garrafa de vinho. Comecei a caminhar pelos corredores e ela vindo atrás puxando conversa.


Como não iria me livrar da fiel devota resolvi entrar na brincadeira. Olhei para ela, peguei em suas mãos e disse:

  • Irmã, sou seu pastor e obrigado por estar lá. Hoje farei uma pregação muito mais bonita. Conto com você. Chegue antes para conversarmos. Seja abençoada. Amém!

Os olhos dela encheram de alegria, apertou minhas mãos bem forte e disse: Obrigado pastor. Saí rapidamente, sem levar o meu vinho. Consegui salvar o pão e os docinhos.

Eu com cara de pastor?  Huummm. Será? Glória a Deusxxx diria o Cabo Daciolo.


quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

O entregador de pizza

 O entregador de pizza


Malandro bom é o malandro esperto, espirituoso e rápido no gatilho. Quando cheguei em Joinville, vim para trabalhar no jornal e lá encontrei uma turma ótima, gente boa, que me receberam muito bem, se fizeram amigos, companheiros rapidamente. Era mais um na matilha!


Maioria jovens na faixa dos 23, 24 25 anos alguns casados, outros solteiros outros bígamos outros polígamos. Trabalhávamos em sintonia e não tem como não saber, desconfiar da vida pessoal de quem convive a maior parte do dia em um salão de 40 pessoas, que na época usavam máquina de escrever, réguas de paica e tudo era desenhado em papel e o jornal montado em grandes mesas de colagem (past up).


Sabíamos quem sai com quem, quem tem amante, quem tem casinhos, quem ficou com quem. Situação quase que normal. Ou romances de final de festa embalados apenas por algumas Faixa Azul que eram fabricadas em Joinville, considerada a melhor cerveja mundial do Brasil, devido a qualidade da boa água extraída em jazida própria alí no bairro América.


Mas um alemãozinho magro, mais feio que indigestão de torresmo, de óculos, falante, boa praça, sujeito educado e bom colega tinha fama de conquistador. Eu só pensava: este mal acabado, falta até reboco e cheio de namoradas e eu não consigo nem um oi. Mas deixa pra lá, um dia surge um chinelo velho para meu pé torto.


O alemãozinho era festejado pelos colegas e algumas lançavam olhares lânguidos para o sujeito. De canto de olho eu só observava. E corria a falação de que ele visitava com regularidade uma das colegas, casada, mas o marido trabalhava em outra cidade e vinha de vez em quando.


Semanalmente ele ia fazer uma visita, assistir um filme do Corujão (não existia internet nem Netflix) e levava o lanche porque a fome aumentava com tanta movimentação noturna. Não tinham dia para se encontrar. Todo dia era dia, afinal o marido não estaria.


Era uma terça-feira, dia tranquilo sem ter que preparar edições de final de semana. Lá pelas 20 horas ela saiu e foi para casa. Só deixou o bilhetinho na mesa: Passa lá!. Com sorrisão de lagarto e mais faceiro que mosca em rolha de xarope, o alemãozinho adiantou serviço, tratou de guardar tudo e nem tchau deu para a turma.


Dá-lhe calcanhar até uma pizzaria do centro. Escolheu uma gigante de 4 sabores (Calabresa, Margherita, Muzzarela e Napolitana) para agradar mais ainda. Aproveitou para levar um vinho do bom. Nada de garrafão. Gastou os tubos na compra de um Almadén, que na época era coisa de rico e só para ocasiões especiais, principalmente para quem ganha salário de jornal.


Saiu da pizzaria fazendo poeira na calçada. Já eram 21h30min. Sobe e desce calçadas, atravessa a rua rápido para não esfriar a pizza e nem esquentar muito o vinho que ele pediu gelado.


Esbaforido meteu a mão na fechadura, que deveria estar aberta como sempre foi o combinado. Ela estaria de penhoar esperando na cama, e o toca-fitas tocando Total Eclipse of the Heart de Bonnie Tyler. Ué, será que trancou? Pensou e forçou de novo a porta. Nada!

  • Pois não, o senhor deseja algo? - atendeu um homem aparentemente  mais velho. 

  • Não, nada é que sua senhora queria lhe fazer uma surpresa e mandou entregar esta pizza com este vinho - se desvencilhou rapidamente o alemãozinho malandro.

  • Quanto custa. Tenho de pagar? Questionou o marido.

  • Tá pago, tá pago, não precisa...disse o colega e saiu queimando sola.

  • Amor, adorei sua surpresa, só estranhei que o motoboy veio a pé. Coitado! Vamos comer? Convidou o marido colocando a pizza sobre a cama e o vinho no bidê com dois copos cristalcica.


quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

Pescaria em Corumbá

Planejada a viagem entre os amigos, tudo pago e um importante cidadão, que vamos chamado de Antonio, viu o roteiro de 1.551 km a percorrer atravessando Paraná, São Paulo e Mato Grosso até chegar no pesqueiro em Corumbá, foi rápido na decisão. “Estou com uma crise de ciático e não aguento tudo isso num banco de ônibus”, justificou. E a dor, de acordo com ele era pior que dor de parto. Tinha ido em clínicas particulares e até em benzedeira afamadas, tomado garrafada e nada.

Combinou que iria até São Paulo de avião, lá pegaria outro vôo com destino a Campo Grande. Encontraria lá na capital do Mato Grosso do Sul  o grupo que viajava num moderno ônibus leito de dois andares fabricado pela Busscar.

No dia marcado, bem cedinho a turma do ônibus sai rumo ao Paraná. Seguem pela BR 101, entram em terras paranaenses até a primeira parada para o almoço em Ponta Grossa. Mas nesta parada tinha uma novidade. Lá embarcaram um grupo de “comissárias de bordo”. Serviam, entretiam e só não levaram aparelhos de medir pressão. Bem. Afinal, nenhuma saberia manusear ou saber o que significa 12/8 ou 20/10. Aí a viagem começou a ficar animada. Deviam dar parabéns ao “manager” que planejou a viagem, pensou em quase tudo.

E dá-lhe estrada. Rodas comendo na BR 376 até lá em Mauá da Serra onde se pega a rodovia estadual 445 em direção a Londrina e vai em direção ao oeste de São Paulo. Atravessa o Paranapanema, passa a lo largo de Presidente Prudente e come mais asfalto. Enquanto isso, alguns dormem babando de boca aberta, outros no carteado embaixo e os mais astuciosos no belvedere apreciando a viagem em boa companhia, Belvedere porque dá para ir vendo a viagem naqueles janelões do andar superior bem em cima da cabine do motorista. Deita, apoia os pés no vidro e toca a viagem. Passa Prudente, passa Venceslau e segue em Presidente Epitácio onde se atravessa a grande ponte de 2.550 metros que liga os estados do Paraná e Mato Grosso do Sul. É um marzão de água doce, coisa mais linda do mundo. Tem muito chão pela frente.

Dez horas depois o possante de  dois andares fabricado em Joinville entra no pátio do Posto América 2, perto do autódromo. Lá estava o personagem do nervo ciático com sua malinha de mão. Chegou no aeroporto, pegou um táxi e ficou esperando no posto. Finalmente os pescadores chegaram. Dalí pra frente mais 500 km e chegariam a pescaria. Alguns desceram para esticar as pernas, outros ficaram no ar condicionado do ônibus por que naquele desertão de terra vermelha às margens da BR 262 o calor estava de riscar chifre no asfalto.

Vamos lá pessoal, vamos chegar ainda cedo. Vamos subir - ordena o chefe da equipe. E Antonio com dificuldades de subir ao segundo andar, já que as escadinhas são estreitas e em formato de L recebe ajuda com a malinha e lá se foi degrau por degrau.

Escalados os difíceis degraus da escada interna do ônibus, que naquela altura parecia escalada do Aconcágua ou do Everest, Antonio meio cansado se deparara com o resto da turma e lá do belvedere uma voz feminina esfuziante grita e vem correndo abraça-lo;

  • Antonio, você aqui, que saudades! - ele não acreditou.

 Seguiu a viagem no belvedere. É difícil se esconder  até com 1.500 quilômetros de distância. O manager deveria saber se a “comissária de bordo” já havia trabalhado por aqui. Sim esta havia prestado serviços na Barra Velha e conhecia a maioria dos pescadores.


domingo, 19 de janeiro de 2020

Velórios de antigamente

Definitivamente não se faz mais velórios como antigamente. Eram acontecimentos onde se reuniam amigos, parentes, conhecidos e desconhecidos. Alguns iam para ocupar o tempo ocioso ou para se divertir um pouco.

Os velórios eram realizados nas residências das famílias, e o extinto ficava em posição nobre no meio da sala com os pés para a porta da frente, geralmente no meio de quatro velas. E o dito velório durava de um dia para o outro. E as notas fúnebres lida nas rádios fazia eco. Um contava para o outro. Mandavam até para rádios de outras cidades onde se sabia que tinham parentes.

Vinham parentes distantes para se despedir, vizinhança se revezava, a viúva dava chiliques e era amparada pela comadres e parentagem. Ou o viúvo ensaiava algumas lágrimas sob os olhares atentos de novas pretendentes.

Que pouca vergonha, a fulana nem esfriou e a vizinha já está “espichando o olho” para o viúvo - comentavam as jararacas.

Não se faz mais velórios como antigamente!. Ao anoitecer vinha mais gente e a cozinha era o local melhor da casa, ali estavam fazendo alguma comida boa para servir aos que vinham e iam e para os que passavam a noite. No pátio, nos fundos da casa sempre tinha um grupo com chimarrão, pipoca, pratão de bolacha Maria, um garrafão de vinho, uma cachacinha e no fim virava cantoria e contação de piadas. E aí atravessava a noite.

A seriedade voltava com o alvorecer. Alguns iam trabalhar curtidos pela noite, outros tomavam tenência e se chegavam perto do caixão. Afinal mais tarde o padre vinha para a missa de corpo presente.

A chegada do sacerdote era algo esperado e importante. Afinal conseguir um padre para ir em casa era muito difícil. As relações de amizade contavam, pois geralmente alguém ajudava na Igreja, ou era aparentado do líder religioso. Já o recebiam lá na rua e vinham em cortejo, entre choros e lamentações. Missa boa e válida tinha que ser com o Padre, nada de seminarista ou diácono. Para encomendar a alma e levar o distinto (a) para o Céu, só valia as bençãos de um Padre formado no Seminário.

Feita e encomendação, caixão fechado, choradeira, desmaios, corre-corre, vinha outra parte divertida. Às vezes atrasava para esperar um parente ou um filho que ainda não chegou para o último adeus.O cortejo. Seguiam o carro funerário os veículos e depois os ônibus. Sim, colocavam ônibus para os amigos que queriam dar seu último adeus. Se media a importância do morto pelo número de carros no cortejo. Alguns paravam o trânsito e o comério. De tão lindo o cortejo até parecia desfile de 7 de Setembro.

Eu gostava de ir nos velórios para andar de ônibus. Uma vez um colega passou na frente da minha casa e disse: - Vamos a Cotegipe (município distante 12 km) o ônibus vai e volta. O vizinho da rua ali de cima morreu e vai ter missa de corpo presente. - Não pensei muito. Vamos lá conhecer. Na época não tinha asfalto. Estrada ruim esburacada e lá se foi o cortejo com ônibus quase lotado. Chegando em Cotegipe, todos foram para a Paróquia Nossa Senhora do Rosário, bem no centro. Eu e meu colega foram para o turismo pelas ruas do pequeno município. Não podíamos perder o ônibus para voltar. Andava uma quadra, esticava o pescoço para ver o movimento na porta da Igreja.

E eu nunca soube quem era o vivente que se foi.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

Que sejam lágrimas de alegria

 Que sejam lágrimas de alegria


“Se houver lágimas, que sejam lágrimas de alegria”. Esta frase teria sido dita pelo argentino Jorge Mario Bergoglio antes de entrar na Capela Sistina onde estavam os cardeais que o elegeram, para logo em seguida ir para a varanda do Vaticano  e ser apresentado como o novo Papa Francisco  ovacionado pelo povo.


Esta é a cena final do filme dirigido pelo brasileiro Fernando Meirelles e que concorre ao Oscar. Dois Papas. Recomendo que assistam. Vale pela excepcional, como sempre, atuação de Anthony Hopkins interpretando Ratzinger, o Papa Bento 16 que renunciou ao pontificado.E também ótima caracterização e interpretação de Jonathan Pryce como Francisco I.


Uma conversa honesta entre duas pessoas que não pensavam igual. Sinceridade do olho no olho e a humanidade de dois seres humanos mais próximos a Deus. Antes de exercer o mais alto cargo da Igreja Católica são gente de carne e osso que comem, bebem, dormem, gostam de música e futebol. E também cometem pecados e carregam pela vida toda fardos acumulados por algumas atitudes ou escolhas da juventude ou no caminho da vida.


O ultra conservador Ratzinger renuncia e recolhe-se em Castelgandolfo. Frustrado por não ter conseguido fazer as reformas que a Igreja Católica precisaria e passa a responsabilidade para o argentino que assumiu há seis anos e tem tudo para fazer. 


O filme relata diálogos dos temas difíceis ao Vaticano e que precisam de ações concretas para evitar ainda mais a perda de fiéis: roubos frequentes no Banco do Vaticano, pedofilia latente em todo o mundo, e ao invés de punir o sacerdote, apenas mudam de paróquia. Neste caso Bergoglio fala para Ratzinger: “e quem defende as crianças? Protegemos os nossos mudando de paróquia”. E outros temas abordados que ainda virão à discussão é a questão da homossexualidade e sua aceitação pela Igreja. 


A narrativa bem feita aborda estes temas e repassa a vida de ambos. Nos faz pensar na necessidade de modernização dos Católicos. Desde a formação dos padres até a missa. Alguns padres são tão chatos que afastam as pessoas. Há paróquias com líderes espirituais simpáticos, acolhedores e com missas agradáveis que dá gosto participar.



quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

A Jeripoca vai piar!

 A Jeripoca vai piar!


Esta história eu posso contar porque o principal personagem já não está mais conosco, mas vou preservar os demais personagens que ainda andam por aí. O causo aconteceu nos anos 90 e quando falo com alguma amiga, colega eu sempre alerto: seu marido vai pescar no Mato Grosso, Argentina, Paraguai? Coloque uma nota de 100 na isca. Se no retorno o dinheiro estiver alí….huuummmm.


Há mais de 20 anos uma turma grande saia de Joinville para pescaria nestes locais distantes. Era muita vontade de pescar. Mais de 3.000 quilômetros, ida e volta de ônibus para pegar uns peixinhos. E nada trazem, pois alegam que a pescaria é “esportiva e/ou contemplativa” Pescam, fotografam e devolvem ao rio. Tá bom….


Este evento ocorreu em Corumbá, num pesqueiro às margens do caudaloso rio Paraguai, lá na esquina onde se encontram Brasil, Paraguai e Bolívia, lugarzinho bom demais. Dizem que há sobra de Surubim, Pacu, Dourado, Tucunaré azul e amarelo e também tem piranha dos dois tipos, o peixe carnívoro e ...bem vocês sabem. E tem também a Jeripoca, um peixe de couro escuro esverdeado com tons de castanho e manchas pretas ovaladas. Tipo uniforme militar camuflado. Este peixe nada na superfície e emite um som característico, que gerou a expressão popular naquela região: a “Jeripoca vai piar”. Significa que vai acontecer algo inesperado, intenso, forte.


Mas os “pescadores” se foram. A viagem divertida com boa bebida, boa comida, jogo de cartas, contação de piadas. Uns bagunçam, outros dormem e assim cumprem os quase 1.600 km de trajeto. Chegando lá o pessoal saiu do ônibus na frente do pesqueiro e quando este meu amigo personagem desceu as escadas já chamou a atenção da guia. Ele com uns 50 anos, alto, magro, cabelhos grisalhos e bem apessoado. Bem humorado, bebedor de bom uísque e infelizmente fumante. Era um cigarro atrás do outro. Vou denominá-lo como Alberto.


Alberto ao dar o primeiro passo no solo vermelho mato-grossense de Corumbá já avistou a líder, que se chegou. Com um aperto de mão que mais parecia uma prensa hidráulica. Vestida de roupas camufladas, faca na cintura e um cinturão onde pendurava um relho e um cantil. Media cerca de 1m90, 80 quilos bem distribuidos num corpo firme, musculoso e sem nenhuma gordurinha. O aperto de mão e a faca na cintura  era um prenúncio do que ela era capaz quando queria algo. A guia ignorou todos os outros 30 “pescadores” e foi direto no Alberto - Bom Dia. Eu vou ser a guia do pesqueiro e você é um homem muito bonito. Hoje a “Jeripoca vai piar”. Saiba que já fui miss Pantanal?” - adiantou. Sem nada falar Alberto só sentiu a firmeza daquela mão e imaginou do que era capaz numa boa briga para apartar ou para bater.


Cada qual no seu quarto, instalados foram descansar um pouco, já que a pescaria iniciaria bem cedo no dia seguinte, afinal ficaram dois dias sovando dentro de um ônibus num calor superior a 40 graus lá fora. E no Pantanal, a umidade e calor não é para fracos. Imagina para bebedor de uíque e fumante. Preferia observar a pescaria das barrancas do Paraguai. Nem selfie fazia porque não existia celular e as máquinas de fotografia (proibidas por razões óbvias de segurança familiar) eram de filme, Algo complicado para colocar e tirar, principalmente quando a cachacinha era boa.


Após descanso a guia havia preparado um Dourado e um Tucunaré para a turma de famintos. Volta e meia era passava perto do Alberto e atentava: Hoje a Jeripoca vai piar”. Já o deixou preocupado. Imaginou tanta coisa: será que é uma cobra, assombração, que diabo é isso que esta doida está falando?- questionou em seus pensamentos, mas nada comentou com os colegas.Continuou com seu uísque copo longo com gelo. Algumas doses a mais já estava no cowboy. Huumm, pensando bem,  também acho que a Jeripoca vai piar. Vai começar a ouvir coisas: onça, coruja, jacaré, e vai ouvir de pertinho a Jeripoca.


Mas Alberto desanuviou os pensamentos e  ouvia seu inseparável radinho de pilha. Levava sempre para ouvir o JEC-Joinville Esporte Clube, mas lá ouvia as músicas das rádios locais. Guarânias do Paraguai, Milionário e José Rico na rádio Corumbá ou uma diablada boliviana. Pancinha cheia, cada qual no seu quarto. Cansados da viagem e bem alimentados, todos foram dormir lá pelas 21h.


Lá pelas 21h15min começa a assombração. Alberto meio zonzo do uísque ouvia as corujas, já sentia o jacaré entrando pelo quarto jura ter visto uma onça caminhar pelo telhado da pousada. A decoração era  pitoresca, mas assustadora: piranhas, couro de cobra, tapete de couro de onça e uma imensa cabeça de jacaré com a boca aberta na parede dos pés da cama. Eu não ficaria alí.

Mas o barulho que o intrigou foi na porta de sua suíte selvagem:

    -Toc ! Toc! Toc! - Abra a porta meu lindo! Não te faz de bobo. Eu te prometi que hoje a Jeripoca vai piar”.- sussurava uma voz feminina grossa. Na dúvida se fosse efeitos do uísque, assombração ou o cumprimento da promessa da guia do pesqueira. Alberto só levantou o volume do radinho de pilha e adormeceu na cama com colchão de palha, travesseiro de penas. Tocava no radinho Paixão Proibida. Na manhã seguinte no café? Nem um piu!